22.11.21

O outro lado dos "Anos Dourados"

Apresentamos aqui trechos do livro "Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus. A poetisa vivia na favela do Canindé, em São Paulo, e seu livro se passa nos chamados "Anos Dourados", o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Reflita sobre os aspectos apresentados em relação ao custo de vida no período e sobre a estabilidade do regime democrático.

Observação: a escrita é conforme o que é apresentado no livro.

20 de maio de 1958

...Quando cheguei do palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizerme que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu filho João José disseme:

—Pois é. A senhora disseme que não ia mais comer as coisas do lixo.

Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:

— É que eu tinha fé no Kubstchek.

— A senhora tinha fé e agora não tem mais?

— Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia. ...Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.

13 de junho de 1958

Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. E o terrestre. E o atacadista.

A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei dos juizes que é Deus. Foi em janeiro quando as aguas invadiu os armazéns e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guarda esperando alta de preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.

16 de agosto de 1958

Passei na sapataria. O senhor Jacó estava nervoso. Dizia que se viesse o comunismo ele havia de viver melhor, porque o que a fabrica produz não dá para as despesas.
Antigamente era os operarios que queria o comunismo. Agora são os patrões. O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.

24 de outubro de 1958

...Eu fiz café e mandei o José Carlos comprar 7 cruzeiros de pão. Dei-lhe uma cédula de 5 e 2 de aluminio, o dinheiro que está circulando no paíz, Fiquei nervosa quando contemplei o dinheiro de aluminio. O dinheiro devia ter mais valor que os generos. E no entretanto os generos tem mais valor que o dinheiro.

Tenho nojo, tenho pavor

Do dinheiro de alumínio

O dinheiro sem valor

Dinheiro do Juscelino.

5 de novembro de 1958

Comecei sentir fome. E quem está com fome não dorme.

Quando Jesus disse para as mulheres de Jerusalem: — “Não Chores por mim. Chorae por vós” — suas palavras profetisava o inverno do Senhor Juscelino. Penado de agruras para o povo brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que encontrar no lixo ou então dormir com fome.

Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica
rodando sem pegá-la?

É igual o governo do Juscelino!