16.8.22

Incendiar Borba Gato não é terrorismo

Porque homenagens à escravocratas como Borba Gato devem sumir do mapa – por Guilherme Soares Dias 

    Cerca de 50 pessoas colocaram fogo na estátua de Borba Gato, localizada na Praça Augusto Tortorelo de Araújo, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, neste sábado (24). Uma bandeira com os dizeres “Revolução Periférica” foi estendida em frente ao monumento inaugurado em 1963. A estátua de Borba Gato, do escultor Júlio Guerra, homenageia é um dos foi um líder bandeirantes responsável por ações violentas e escravização de indígenas e negros. 

    A retirada da homenagem à racistas e escravocratas veio à tona em várias cidades do mundo após a morte de George Floyd em maio de 2020. Em países como Bélgica, Inglaterra, Colômbia e Martinica estátuas de escravocratas já caíram. Aqui no Brasil, a debate sobre a retirada é endossado por especialistas e faz reparação histórica. “Quem não contou essas histórias? Por que não as fez, nem as faz? Quais mecanismos do saber atuam para apagar essas memórias? A retirada (de estátuas) também joga luz sobre as práticas de racismo hoje, nos convida a refletir sobre a quem pertence o espaço público, que figuras devem lá figurar (se é que alguma deve), que demais opiniões importam nesse debate antes reservado aos ‘especialistas’”, arma o curador de arte e antropólogo Hélio Menezes. 

    “Ao se retirar o monumento racista, se retira a autoridade discursiva dos que se dizem dele especialistas. Retira-se também a máscara de quem os defende – não nos enganemos – porque estão querendo defender é a si mesmos. E a seus próprios pedestais”, conclui Hélio Menezes. 

    Monumento é a memória que tem que ser preservada para o futuro, ressaltou o doutor em Filosofia e teoria do direito pela USP Silvio Almeida em sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura “Algumas estátuas marcam derrotas (do povo negro) e são continuidades da escravidão. O espaço público tem que ser reconfigurado. Retirar estátua é ato político. Revisionismo histórico é não querer que o fluxo da história siga seu rumo. Tem gente que chora por estatua, mas não chora quando morre um negro”, pontuou.

    No caso de São Paulo, uma das estátuas mais emblemáticas de homenagem aos bandeirantes: a de Borba Gato, que fica em Santo Amaro, na região sul, carrega ainda um outro problema. “Fato: a estátua de Borba Gato é mais feia do que Satanás chupando uma fruta-do-conde. Poucas coisas diminuiriam mais a FIB (Feiura Interna Bruta) de Santo Amaro do que uma discreta remoção da estátua e sua substituição por, sei lá, uma muda de ipê-amarelo”, como lembra o jornalista Reinaldo Jose Lopes.

    Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e ex-vereador de SP ressalta que há “dificuldade de romper com a história oficial de São Paulo, construída sobre uma farsa, solidamente fincada no ideário dominante paulista”. “A exaltação dos bandeirantes é profunda e está presente em um variado espectro de elementos”, escreve. 

    O chamado “racismo urbano”, homenagem à figuras escravocratas e ou racistas, e o apagamento de heróis negros é presente na maior parte das cidades brasileiras. Um debate que a sociedade ainda precisa fazer e o poder público se rever. O Guia Negro, site que fundei, criou um abaixo assinado para retirar os monumentos racistas de São Paulo. A intenção é apoiar o projeto de lei / da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL/SP). A intenção é proibir honrarias para escravocratas e para qualquer pessoa que tenha sido condenada por prática de crimes contra a humanidade, exploração do trabalho escravo e racismo. 

    Os monumentos são materiais da história. Eles são utilizados para documentar o passado das sociedades e dos povos, em contextos atravessados por disputas políticas em torno dos temas, personagens e abordagens que são incluídos na memória coletiva. Assim foi elaborada a história oficial do Estado brasileiro, que está baseada em narrativas excludentes em relação às experiências dos povos negros e indígenas. 

    Substituir estátuas, nomes de ruas, rodovias, praças e aeroportos é urgente. São Paulo, por exemplo, tem apenas uma estátua que homenageia uma mulher negra: a mãe preta, no Largo Paissandu, esculpida pelo mesmo Júlio Guerra. Ela não coloca as mulheres negras em lugar de heroísmo ou potência, mas de subserviência, reforçando um dos estereótipos dados a pessoas negras. 

    A estátua que homenageia Zumbi, por exemplo, é minúscula e passa quase despercebida na Praça Antônio Prado. Por isso, tirar a estátua de Borba Gato, que tem dez metros de altura, e homenagear heróis que representem a maioria da população brasileira, negra e indígena, é tarefa importante que deve ser assumida por governantes, empresas e sociedade. 

Guilherme Soares Dias é jornalista, consultor, organizador da Caminhada São Paulo Negra e fundador do Guia Negro. 

4.8.22

Escravidão na África

Revista Pambazuka - Em seu livro e em outras obras, o senhor desconstrói o mito de um sistema escravista africano que justificaria e legitimaria as formas de escravidão que deram origem aos tráficos. Qual era o conceito de "escravo" na África antes dos tráficos liderados por europeus e árabes?

Kabengele Munanga - Em primeiro lugar, a existência do chamado "escravo" não é razão para aceitar a escravidão. Em qualquer circunstância, a escravidão é uma instituição desumanizante e deve ser condenada. O homem nasce livre até que alguém o escravize. Portanto, o próprio conceito está errado. O correto é "escravizado", não "escravo". Não há uma categoria de escravo natural. Porém, esse conceito já está enraizado na literatura.

Em segundo lugar, o conceito de "escravo" vem de outra visão de mundo, diferente da africana. Como em outras sociedades, na África existia a categoria de cativos, que eram prisioneiros de guerra ou pessoas que cometiam algum delito na sociedade e eram levadas por outros grupos étnicos. Os homens trabalhavam como serventes dos reis, príncipes e guerreiros, enquanto as mulheres se tornavam esposas e reprodutoras das famílias reais. Todos os filhos dos cativos eram livres. Em outros casos, famílias penhoravam algum parente quando havia grandes calamidades. Esses parentes poderiam trabalhar em outras famílias temporariamente ou para sempre, caso sua família original não tivesse condições de adquiri-lo de volta. [...]

Essa categoria de cativo africano foi traduzida como escravo. Mas não o é, pois o sistema escravista pressupõe que os escravizados sejam bem mais numerosos que os senhores. [...] Muitos reis e príncipes colaboraram com o tráfico negreiro para outros continentes, capturando negros de outros grupos étnicos para vendê-los como escravizados. Mas este fato também não justifica a escravidão.

USP ONLINE. Nova legislação e política de cotas desencadeariam ascensão acadêmica e inclusão dos negros, diz professor. Pambazuka News, 2010. Disponível em: https://www.pambazuka.org/pt/security-icts/nova-legisla%C3%A7%C3%A3o-e-pol%C3%ADtica-de-cotas-desencadeariam-ascens%C3%A3o-econ%C3%B4mica-e-inclus%C3%A3o-dos Acesso em 04-08-2022

 

Responda:

1. Para Kabengele Munanga, por que o conceito de escravo é equivocado e deveria se utilizar o conceito de escravizado?

2. Como era a escravidão na África?

3. O que caracteriza um sistema escravista?