O que é ser indígena no Brasil hoje?
“Ser indígena hoje no Brasil é não visualizar um futuro de curto prazo para termos um pouco mais de paz e ter a garantia dos nossos direitos em relação à concretização das terras demarcadas. Ser indígena, hoje, é saber que cada manhã vai ser de luta, persistência e coragem”
(Giselda Pires de Lima da etnia Guarani, professora de Ensino Fundamental, 36 anos)
“Hoje, ser indígena, para nós jovens acadêmicos, é trazer diversos conhecimentos tradicionais do nosso povo, para que as sociedades não indígenas tenham conhecimento das distintas realidade milenares que os povos que trazem consigo.
A escrita não é a mesma coisa que a fala, então para nós é importante usar audiovisual, celular. Meu pai está lá em Atalaia do Norte, como vou me comunicar com ele? Como vou ter informações, se eu estou no mundo na sociedade não indígena? As pessoas que pensam que o índio tem que viver só no mato querem acabar com nossa cultura.
A realidade se transforma. E o povo não indígena muitas vezes não percebe que também incorporou nosso modo de falar, nossos costumes, nossa forma de alimentação. A sociedade não indígena vivencia nosso jeito de ser todo dia”
(Nelly Duarte da etnia Marubo, doutoranda no Museu Nacional-UFRJ, 35 anos)
“O índio brasileiro hoje tem que ter orgulho de suas raízes e ter consciência do passado. Renovar seus conhecimentos e acima de tudo saber lidar com o mundo atual.
Muitos não índios ainda têm uma visão atrasada em relação ao indígena. Mas eles esquecem que também somos seres humanos, que estamos sempre em mutação e seguindo o ritmo da vida e do universo.
Várias coisas nossas passam também para a sociedade não indígena. A terra não foi descoberta sem indígena”
(Ysani Kalapalo da etnia Awati e Kalapalo, ativista e empreendora social, 26 anos)
Por que o senso comum nega aos indígenas sua identidade quando eles incorporam hábitos e tecnologias não indígenas ao seu dia a dia?
O senso comum desconhece a noção de cultura, que é um processo contínuo de transformação. Os povos indígenas sempre incorporaram hábitos e tecnologias seja uns dos outros, seja de sociedades vizinhas como os Incas, com os quais algumas etnias da Amazônia ocidental estabeleciam contato antes da invasão dos europeus.
Toda cultura é por definição aculturada, isto é, resultado de um processo contínuo de apropriação de conhecimentos e práticas alheios. O senso comum pode até se dar conta de que tal processo acontece com a sociedade brasileira, que é mais brasileira quanto mais incorpora hábitos orientais, europeus ou africanos. Mas não quando se trata das sociedades indígenas. A ótica colonialista corrente imagina que índios são espécimes de museus, que devem permanecer sempre congelados para, quem sabe, merecerem os seus direitos. Esquece-se assim de que os índios são pessoas reais, dotadas de tradições dinâmicas que, assim como outras tantas, são sempre traduções.
(PEDRO CESARINO)
O "senso comum" - que expressa os valores da sociedade dita "moderna" - precisa manter os índios no passado. Sempre foi assim. Os índios são parte da pré-história do Brasil. Esse foi o jeito que o Ocidente encontrou para "amar" os índios.
Veja-se o tão famoso indianismo na literatura brasileira. Índio "bom" é o índio suficientemente distante - no tempo, mas também no espaço. São índios "de verdade" os Tupinambá da época da Conquista, nos séculos 16 e 17, que chegam a nós pelos relatos de viagem e continuam a povoar nosso imaginário com seus lampejos de antropofagia. Ou então os Zo'é, também falantes de uma língua tupi-guarani, do Cuminapanema, no Pará, que até certo tempo eram categorizados "isolados", o que provocou o interesse retumbante de um sem número de fotógrafos e videastas ávidos por imagens dos "últimos selvagens".
Não são índios "de verdade", sob esta ótica, os Guarani (plenos falantes de outra língua tupi-guarani) espalhados por um vasto território que vai do Mato do Grosso do Sul passando por toda a costa Sul e Sudeste, uma vez que vivem na cercania de grandes cidades, comem comida de brancos, usam roupas, fazem uso de diferentes tipos de tecnologias.
As culturas se transformam, são inventivas. Mas a maneira como cada uma se transforma depende sempre de um estilo particular. A ideia de que é um destino desejável a ruptura radical ou a adesão a um sistema-mundo homogêneo não é algo abraçado por todas as sociedades.
Os índios nos ensinam, entre outras tantas coisas, que é possível coexistir com os não índios sem abrir mão de modos de ser específicos, que no mais das vezes se chocam com a ética do neoliberalismo. O problema, claro, é ao mesmo tempo conceitual e político. Pois exigir que os índios tenham uma cultura imutável, que eles não possam se apropriar de elementos exógenos é mantê-los à distância, no tempo e no espaço, é como promover um apartheid.
(RENATO SZTUTMAN)
Texto retirado de: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/04/29/O-que-%C3%A9-ser-ind%C3%ADgena-no-Brasil-hoje-segundo-3-jovens-e-2-antrop%C3%B3logos