28.6.21

Maria do Egito

Maria do Egito - Sergipe - século XIX

Maria do Egito nasceu no ano de 1828. Em Aracaju, em 1858, ela moveu um processo contra Evaristo José de Santana, seu senhor, no qual reclamava seu direito à alforria. Conforme mostra Luiz Mott, corajosa ela declarou nos autos que trocou sua virgindade pela liberdade. Além do mais, alegava que a relação de 14 anos que estabeleceu com seu proprietário era violenta por parte dele, que sempre adiava a sua prometida liberdade.

Na cidade o relacionamento entre a escravizada e Evaristo José era público, a despeito de ele ser casado. No entanto, para tentar disfarçar e como era costume, o proprietário tratou de arranjar um casamento entre a cativa e seu sobrinho, João Barbosa de Brito, de quem Maria acabou engravidando. Ao tomar conhecimento do fato, Evaristo rasgou a carta de alforria que tinha prometido e lavrado, e exigiu o retorno imediato da moça ao cativeiro. Não contente, bateu nela e lhe provocou o aborto. Foi nesse ambiente que Maria resolveu abrir um libelo civil pela liberdade e contra o arbítrio de seu senhor. A tese da Defesa era de que a escravizada já adquirira a liberdade por direito, independentemente da carta de alforria emitida por seu proprietário, uma vez que havia se deitado com seu senhor por muito tempo. A própria Maria do Egito, consciente de seus direitos, afirmou em juízo que, sob a promessa de libertar, deixou-se levar de sua virgindade por amor único de gozar deste maior bem que pode usufruir um ente humano - a liberdade.

O juiz de paz deu ganho de causa ao senhor. Esse episódio ilustra à perfeição uma situação que se repetia com muitas escravizadas em várias senzalas espalhadas pelo Brasil.

Liberata

Liberata - Santa Catarina - Séculos XVIII e XIX

Nascida por volta de 1780 na vila de Paranaguá, atual Paraná, Liberata sempre seguiu o norte da liberdade. Ela era filha de africanos escravizados. Pertencia a Custódio Rodrigues. Em 1790, foi vendida para José Vieira Rebello morador no Desterro (atual Florianópolis. Foi provavelmente nessa época que Liberata começou a conhecer o assédio senhorial, com perseguições e abusos sexuais. Foram também tempo de muito medo, pois ela temia que sua senhora e a filha desta atentassem para esses abusos costumeiros do seu senhor, o que resultaria em castigos físicos ainda mais brutais e também na possível venda da escravizada.

Em 1793 Liberata teve um filho com seu senhor, que prometera dar a liberdade a ambos Com o nome de José, o menino foi batizado e reconhecido na Freguesia de São Miguel. Mas Liberata seria alvo de outra perseguição: a de sua senhora. Para piorar a situação, ela engravidaria novamente.

Liberata tinha, entretanto, planos familiares próprios. Resolveu se casar com o pardo José e também ofereceu dinheiro para comprar sua liberdade. Seu senhor, quem sabe motivado por ciúmes, não consentiu no casamento nem concordou com os valores pagos para o pagamento da alforria. Ainda no ano de 1813, teriam início as batalhas judiciais de Liberata, então com 33 anos, para garantir a sua liberdade. Uma vitória parcial foi conquistada, com a fixação de valores para o pagamento da liberdade de Liberata; ela estava finalmente livre.

Francisco Antônio da Costa

Francisco Antônio da Costa - Pernambuco - Século XIX

Foram muitos os escravizados fugidos e os que procuram Refúgio se alistando em tropas auxiliares e milícias de homens pardos e negros livres, incluindo libertos, no Brasil do século XVIII e da primeira metade do século XIX. E essa é a história de Francisco Antônio da Costa, que acabou se notabilizando como destacado combatente militar na Confederação do Equador, que ocorreu em Pernambuco em 1824. Francisco Mina era um cativo africano, da costa ocidental, que tinha conquistado a sua liberdade em 1811.

No entanto, entre 1824 e 1828, Dona Maria Luís Monteiro, sua antiga proprietária, tentou revogar a alforria, alegando que Francisco não teria cumprido o registrado na sua libertação condicional, que estipulava que deveria manter-se trabalhando e que só ficaria livre depois da morte dela. Em vez disso, Francisco passou a desrespeitar Dona Maria, já se julgando liberto. Ele se casou e armou uma venda com sua esposa, vivendo como pessoas livres.

Dona Maria transformou tudo num processo civil para revogar a liberdade de Francisco. Entre a alforria condicional em 1811 e o processo iniciado em 1824, que ficou sob decisão judicial até 1828, passaram-se 13 anos. Nesse meio tempo Francisco, viveu como um homem livre e foi assim que se alistou nas milícias, no contexto da independência, em 1822. Francisco não queria apenas se esconder mas reafirmar sua identidade como um homem livre que poderia se alistar, o que era entendido como uma distinção entre os auxiliares de libertos e patos.

Mesmo como herói militar. Francisco da Costa perdeu a sua liberdade nos campos jurídicos, voltando a ser o cativo Francisco em 1828.

Agostinha

Agostinha - São Paulo - Século XIX

Vários escravizados, sobretudo no século XIX, acionaram a justiça com ações de liberdade em que reivindicavam alforria. Reclamavam de castigos, das condições de trabalho e do cativeiro ilegal; porém muitos foram os cativos que ficaram submetidos às violências de seus senhores, sobretudo em áreas rurais. Mesmo quando faziam denúncias que podiam ir para imprensa e gerar processos criminais, os fazendeiros acabavam sendo inocentados. Ou nem chegavam a serem investigados pelas autoridades policiais.

Agostinha nasceu cativa no Brasil, no segundo quartel do século 19. Em 1857, o jornal Avassoyaba publicou queixas de Agostinha, que revelaram o cotidiano de violência numa fazenda de café localizada em Campinas. Segundo a escravizada, havia na fazenda um cemitério clandestino, denominado “cemitério de escravos assassinados”. Em face de tais acusações, a sociedade local se viu diante de um debate público. Agostinha afirmou ter fugido pois estava resolvida firmemente a suicidar-se antes do que para lá voltar.

As delações de Agostinha ganharam desdobramentos com novas investigações e mais denúncias anônimas. Castigos e mortes executados pelo feitor, com a total conivência de Barros Dias e de sua esposa, seriam - segundo algumas versões - provocadas pelo “medo senhorial” - pois diziam temer serem envenenados e acusavam a existência de feiticeiros entre os cativos da Fazenda.

As repercussões aumentaram. Em 1861 foi instaurada uma queixa-crime contra Barros Dias e sua esposa, Inácia Joaquina Duarte, e o feitor Eleutério de Andrade, que era ele próprio um escravizado. Estava em jogo o julgamento criminal e moral de um importante fazendeiro da região, além da possibilidade de intervenções jurídicas no poder senhorial. Barros Dias acabaria absolvido, mas a opinião pública provocou grandes constrangimentos aos senhores de Campinas - coração do mundo do café paulista.

Maria Rita

Maria Rita - Rio Grande do Sul - século XIX

Maria Rita, uma africana nagô, pode ter chegado a Porto Alegre - via Salvador - em meados da década de 1830. Ali ela atuaria como quitandeira, sendo cativa de outra africana ocidental, a liberta Felisberta, que há de ter chegado à cidade 10 a 15 anos antes. Também quitandeira, Felisberta fora alforriada em 1840, e em 1847 adquiriu Maria Rita por 650 mil réis. Essa não seria uma prática pouco usual em diversos cenários escravistas urbanos: libertos africanos compravam escravizados africanos colocando muitos desses cativos para atuar com eles no mercado de serviços, especialmente como quitandeiras e comerciantes. Ainda como escravizada, Maria Rita conheceu o africano liberto Antônio José Feliciano que chegou a Porto Alegre no ano de 1846. Os dois eram africanos ocidentais, e em 1849 tiveram um filho de nome Sabino. Em 1850, Felisberta migrou para Salvador, levando consigo seus escravizados. Maria Rita continuaria a atuar como quitandeira, e pode ter adquirido a liberdade em meados da década de 1860. Vamos localizá-la novamente mais de 30 anos depois por causa de uma carta que redigiu para o seu filho Sabino em 1892. Sabino, que assinava como Sabino Antônio Feliciano, trabalhava como aprendiz de pedreiro em Salvador e só conseguiu a liberdade aos 15 anos contando com ajuda do pai que ele mandou um conto e duzentos mil réis para a sua alforria. Sabino teria voltado para Porto Alegre a fim de viver perto do pai e dos meios-irmãos. Na missiva sua mãe tratava da possibilidade de mudar-se para o sul. A africana que então devia ter entre 70 e 75 anos, o tratava por “meu querido filho” e pedia que lhe enviasse 300 ou 400 mil réis, quem sabe para que voltasse a Porto Alegre onde pretendia viver seus últimos anos, mas Sabino faleceu repentinamente.

Felício de Arruda Botelho

Felício de Arruda Botelho - São Paulo - Século XIX

Tudo indica que Felício era filho de africanos e que nasceu como escravizado em 1847, provavelmente em Piracicaba. Já em 1852 trabalhava. Era propriedade de Francisca Teodora de Arruda Botelho, primeira esposa do Conde do Pinhal, e a quem Felício considerava uma “mãe”.

Assim que pode trabalhar foi enviado para a fazenda de propriedade do casal, testemunhando a chegada do café, que ocupou todas as partes da economia, da terra e da mão de obra no Oeste paulista. Ainda bem jovem, Felício presenciou uma mudança demográfica com impacto cultural e étnico ainda pouco estudado: o Oeste paulista abarrotado de cativos africanos chegados do tráfico ilegal até 1850, mais cativos nascidos no Brasil e outros tantos escravizados trazidos via tráfico interprovincial das províncias do Norte.

Consta que Felício se casou no ano de 1862 com Joaquina. Ele não só se casou bem jovem como ganhou mais responsabilidade na fazenda ao ser escolhido como feitor. Lembrava-se de ter implorado ao conde, e mesmo chorado, pois "não queria ser ser feitor, mas ele disse que escravo faz o que a senhoria manda". Provavelmente sabia das dificuldades que teria para comandar cativos não só mais velhos como de diferentes origens, muitos recém-chegados. Deveria manter a disciplina e até mesmo castigar a alguns. Como um dos cativos mais antigos da fazenda, aquele que ajudou a montar a base inicial da plantação, nascido no Brasil, ele foi escolhido como o escravizado ideal para ensinar, manter a disciplina e controlar os demais. Acredita-se que Felício era considerado um escravo de confiança, grande e fiel amigo do Conde do Pinhal, por quem nutria verdadeira estima e veneração.

Ele conquistou a alforria, mas permaneceu atuando nas fazendas do Conde do Pinhal. Ali tinha sua família, parentes e reconhecimento senhorial. No pós-abolição ele se decepcionou com os herdeiros do Conde, a quem acusou de ingratidão. Felício ganhou um pedacinho de terra em Jaú, onde viveu até seu falecimento em 1920.

Emília do Patrocínio

Emília do Patrocínio - Rio de Janeiro - Século XIX

Emília do Patrocínio foi uma africana ocidental empreendedora que viveu no Rio de Janeiro. Era quitandeira e com o tempo se tornou uma grande liderança econômica no mercado carioca.

A primeira referência que se tem de Emília data de 1836. Ela aparece como uma escravizada, pertencente a Teodora Maria do Patrocínio, e batizando uma filha na Freguesia de São José, no centro do Rio. Em 1839 surge um registro da africana comprando a sua liberdade por 500 mil réis. Meses antes, a filha dela também tinha conseguido carta de alforria. Emília se transformaria em quitandeira, mulher livre, constituindo parte de uma “elite” de africanos em cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís. Tratava-se de africanos que chegaram como escravizados a partir do século XVIII, conquistaram sua alforria, depois compraram cativos e passaram a atuar economicamente na vida urbana.

No início da década de 1850 Emília já aparece nos registros como uma comerciante africana liberta que atuava no mercado da Candelária e possuía vários escravizados. Entre 1850 e 1870 Emília é incluída nos registros alforriando ao menos 10 escravizados (dois homens e oito mulheres). Tais alforrias foram pagas pelo valor do mercado, o que sugere a visão de empreendedora que tinha Emília, não só como quitandeira, mas como dona de escravizados.

Na trajetória de Emília fica claro, por fim, o seu investimento na compra de joias e no mercado imobiliário. Emília morre dois anos antes da abolição formal da escravidão, cheia de posses, que incluíam bancas de mercado, cativos, imóveis e joias.

Joana Guedes de Jesus

Joana Guedes de Jesus - Rio Grande do Sul - Século XIX

Joana era uma africana ocidental, denominada Joana Mina, que deve ter chegado à Porto Alegre na primeira metade da década de 1830. Joana pertencia à Dona Maria Guedes de Menezes e adquiriu a liberdade em 1862, e de forma gratuita posto estar doente e “ter servido durante seu cativeiro com todo o zelo e dedicação”. Em 1869 já aparecia nos registros como uma mulher forra, então chamada Joana Guedes de Jesus. Em 1870, casou-se na igreja da Madre de Deus com africano Marcelo Angola. Viviam juntos havia muitos anos: ele como campeiro e ela com várias ocupações domésticas e serviços nas charqueadas próximas. Marcelo tinha 50 anos quando conseguiu se alforriar em 1865, pagando um conto de réis em 1870. Na ocasião do casamento tinha 55 anos e Joana 41. Talvez tenham se conhecido ali, há anos, ambos nas charqueadas nas margens do rio Jacuí: ela tendo começado aos doze anos, em 1834, e ele aos onze, desde 1827. Joana e Marcelo transformaram escravidão, liberdade, amor, sonhos e recordações em projetos familiares reconhecidos pela igreja, logo depois de conquistarem a alforria e juntarem mais recursos. Na época do casamento em 1870 eles já tinham uma filha, Laura, que nasceu em 1839. Laura foi alforriada quando tinha 39 anos, pagando um conto e cem mil réis. Demorou e não foi barato: na época, aquele valor significava o equivalente a cerca de cinquenta bois. As uniões conjugais reconhecidas pela igreja e a liberdade de parentes podiam ser considerados projetos africanos, mas não eram estratégias fáceis, tampouco caminhos garantidos. No entanto, foram trilhados por muitos ancestrais e parentes africanos.

Gertrudes Maria

Gertrudes Maria - Paraíba - Século XIX

Gertrudes ao que tudo indica nasceu na Paraíba e conquistou sua liberdade por meio de alforria paga junto ao casal Carlos José da Costa e Maria Antônia de Melo. Apesar do pagamento, Gertrudes vivia numa liberdade condicional: deveria acompanhar seus donos até à morte. Esse pode ter sido o paradoxo de muitos escravizados que sonhavam com a alforria - tinham que amealhar recursos, economias próprias, serviços extras prestados ou esmolas arrecadadas -, ganhar a confiança de seus senhores, pagar pela alforria (sua e/ou de seus filhos) e no entanto sob a condição de que permaneceriam leais aos mesmos até o fim de seus dias. Dessa maneira, enquanto os senhores precisavam estar vivos e lúcidos o suficiente para, entre dádivas e a necessária submissão, garantir a liberdade condicional de antigos e fiéis cativos, os escravizados desejavam que seus proprietários morressem logo para que pudessem usufruir da liberdade. Não foram poucos os casos de cativos acusados de tentar envenenar senhores e inúmeros foram os episódios de herdeiros que, após a morte de seus antepassados, desrespeitaram os acordos. E essa parece ter sido a falta de sorte de Gertrudes. Os herdeiros, uma vez endividados, resolveram vendê-la para pagar os credores.

Entre 1828 e 1842 vamos encontrar Gertrudes nos tribunais via processos, petições, alvarás e procurações. Ela tentava provar sua liberdade condicional, o valor inicialmente depositado e a ilegalidade de estar sendo vendida em hasta pública. Descobrimos assim que Gertrudes Maria era solteira, trabalhava como quitandeira, e com 30 anos, por volta de 1826, tinha comprado parte de sua liberdade. Segundo os registros de sua carta de alforria, ela havia oferecido 50% de seu valor e prometeu o restante com trabalho até a morte de seus senhores.

No registro dessa sua liberdade condicional mencionava-se que seus senhores só tinham aceitado esse tipo de pagamento por causa dos “bons serviços” que até então Gertrudes prestara. Não era, porém, apenas um formalismo jurídico: tal espécie de concessão ficou registrado no documento oficial e inscrito socialmente, num ritual que reforçava gratidão, submissão, dádiva, dependência e paternalismo. Mas para que não restassem dúvidas, foi explicitado em tom de ameaça jurídica: “sendo que essa dita escrava falte à condição que lhe pomos de nos acompanhar como já dissemos a tornaremos cativa”. No entanto, nesse caso a quebra contratual foi a senhorial.

A disputa judicial tomaria tempo. O apoio de advogados e de testemunhas chamadas para depor atesta o esforço de Gertrudes em fazer valer sua liberdade, especialmente provando o depósito de 50% de seu valor e os acordos lavrados no registro da alforria.

Germana

Germana - Bahia - Século XIX.

Germana nasceu em 1819, em Salvador, e era casada com Manuel Pinto de Oliveira  - um escravizado forro. Depois de trabalharem por alguns anos conseguiram reunir 180 mil réis para comprar a liberdade de Germana.

No entanto, em 1879, quando já contava com 60 anos - idade considerada avançada para época, devido à alta mortalidade, sobretudo da população escravizada - Germana entrou com uma ação na justiça dando queixa do rigoroso cativeiro que sofria com o senhor, que lhe negava a alforria, a despeito de ter recebido o dinheiro necessário para compra da liberdade. Ela pedia que fosse depositada a quantia, “visto que seu senhor não tem querido prestar-se a um acordo razoável sobre o justo valor da suplicante”. Na justiça, Germana argumentava que já estava muito idosa, que continuava sofrendo castigos físicos, que merecia a alforria, mas que seu senhor não lhe dava ouvidos e continuava a desconhecer sua condição física. "Sem atenção a avançada idade da suplicante, seus achaques físicos e crônicos, adquiridos na constância do trabalho, de ter a suplicante produzido quinze crias, uma das quais liberta, na idade de seis meses, pela fabulosa quantia de 500 mil réis, e ser a suplicante casada e viver separada do seu marido homem livre também idoso e achacado de moléstias".

Durante o julgamento o valor de Germana foi sendo reduzido. Seu senhor avaliou-a inicialmente em 250 mil réis, mas no final da ação seu preço ficou 30 mil réis abaixo do original. Germana requereu, então, a devolução da diferença da quantia depositada por ela. Aí está mais um caso que revela como, mesmo com idade avançada, escravizadas se negavam a se manter no cativeiro e lutavam para passar seus últimos dias ao lado da sua família. Não sabemos que tipo de tarefa Germana executava, mas ela entendia o preço que a liberdade podia ter.

Manuel Padeiro e Negro Lucas

Manuel Padeiro e Negro Lucas - Rio Grande do Sul - Século XIX

No Rio Grande do Sul do século XIX existiram vários quilombos e mocambos estabelecidos, tanto nas proximidades de Porto Alegre quanto nas áreas do litoral e regiões de fronteira com o Uruguai e Argentina. Antigas áreas produtoras de couro, carne e trigo tinham cativos africanos.

Nas regiões charqueadoras de Pelotas e Rio Grande surgiram dois quilombos na década de 1830, mais conhecidos pelos nomes de seus líderes: Manuel Padeiro e Negro Lucas. Em 1833, foi atacado e considerado destruído o quilombo comandado por um preto de nome Lucas, em Rio Grande. Lucas pode ter sido um dos escravizados entre os milhares que desembarcaram em Porto Alegre e outros portos do Brasil meridional no primeiro quartel do século 19. Constava que tal mocambo era bem antigo e localizado no embreado do mato da Ilha dos Marinheiros próximo à cidade do Rio Grande. Viviam ali tanto escravizados como libertos refugiados que mantinham contatos mercantis. Com uma base camponesa articulada com os cativos nas charqueadas, os quilombolas transitavam também nas regiões vizinhas. Nessa onda de repressão, depois de uma emboscada, Lucas foi assassinado.

Na mesma década, nas proximidades da Serra dos Tapes, nos arredores de Pelotas foi constituído o quilombo de Manuel Padeiro, entre 1831 e 1832. Pouco se sabe sobre a vida de Manuel Padeiro. Há registros de que costumava ser chamado de general sugerindo habilidades militares. Eles estabeleceram conexões dos Quilombolas com taberneiros, roceiros e sitiantes locais, muitos dos quais africanos libertos.

Nas tentativas de capturar Manoel Padeiro, o africano Simão Vergara acabou preso, processado e julgado. Simão mantinha contatos com quilombolas libertos e cativos assenzalados. Ele foi condenado a 15 anos de prisão. Manoel Padeiro, porém, conseguiu escapar e desapareceu. Houve quem dissesse que foi parar no Uruguai, atravessando a fronteira; outros, garantiram que suas habilidades militares foram aproveitadas na Guerra dos Farrapos, com ele alistado clandestinamente em tropas de lanceiros negros. Manoel Padeiro virou uma entidade naquelas matas e até hoje ele é cantado nos terreiros de Pelotas e adjacências.

Felipa Aranha

Felipa Maria Aranha - Pará - Século XVIII

Na segunda metade do século XVIII, Felipa Maria Aranha organizou um quilombo constituído por mais de 300 escravizados fugidos que se autossustentaram por muitos anos, sem que fossem ameaçados pelas forças legais. Situado nas cabeceiras do igarapé Itapocu, um braço do Rio Tocantins, onde agora existe o município de Cametá, no Pará, chamava-se quilombo do Mola ou Itapocu.

Felipa era provavelmente originária da Costa da Mina. Com cerca de 10 a 20 anos, foi capturada e vendida como escrava, levada para Belém. Em seguida, a enviaram para trabalhar numa plantação de cana-de-açúcar na comunidade de Cametá. Não suportando os maus tratos, ela fugiu junto com outros escravizados, em 1750 e criou o quilombo do Mola, que chefiava. Esse era um quilombo que apresentava um alto grau de organização política, social e militar. Quando começaram a sofrer com a repressão colonial, foi graças à liderança militar de Felipa que conseguiram expulsar as forças portuguesas e os vários ataques de capitães-do-mato. Dona de grande capacidade de articulação política, ela estruturou uma entidade composta de cinco quilombos: Mola, Laguinho, Tomásia, Boa Esperança e Porto Alegre, a chamada Confederação do Itapocu. A entidade empreendeu severas derrotas às forças escravagistas e, diferentemente do exemplo de Palmares, só cessou sua luta no momento em que Portugal ofereceu o perdão político e declarou os quilombolas súditos da Coroa.

Felipa Aranha morreu em 1780. A resistência e o protagonismo das mulheres negras são históricos e tem suas raízes fincadas na tradição e na cultura de suas ancestrais africanas, através de artifícios, improvisações e muita astúcia, elas reinventavam o seu cotidiano, conseguindo assim melhores condições para si e para os seus. As terras do Quilombo de Felipa Maria Aranha só receberam reconhecimento legal recentemente, em 2013.

Ana Clara Andrade

Ana Clara Maria Andrade, Deolinda e Isabel Maria da Conceição - Rio de Janeiro - Século XIX

Mulheres capoeiristas no século XIX?” Ironizando a cena, a edição do Jornal do Commercio de 29 de Janeiro de 1878 noticiava que algumas pretas tinham sido “presas por capoeiras” na Rua do Riachuelo, no Rio de Janeiro, sob a acusação de serem “peritas na capoeiragem” e com adjetivo de “destemidas”, foram detidas as mulheres negras livres Isabel Maria da Conceição e Ana Clara Maria Andrade, juntamente com a escravizada Deolinda. Segundo o jornal, elas estavam todas em “renhida luta”, desafiando pedestres e, depois, as próprias autoridades.

Identificada como pratica - luta, ritual e dança -  associada às grandes cidades atlânticas e à população negra, a capoeira e seus “capoeiras” -  homens e mulheres - proliferaram no final do século XVIII e ao longo do século XIX , especialmente no Rio de Janeiro, em Salvador e no Recife. Não se sabe de que modo essa prática se desenvolveu e chegou a várias regiões do país, junto aos setores livres e não negros, como imigrantes vivendo no Rio de Janeiro, por exemplo. Até a década de 1850 mencionava-se a existência de uma capoeira escrava praticada por africanos, sobretudo centro-ocidentais e pela população negra livre. No último quartel oitocentista a atividade se espalhou com rapidez por diversos centros urbanos, mobilizando pessoas livres, consideradas brancas e mesmo letradas. No Rio de Janeiro havia muitos escravizados de ganho, participantes do mercado de rua e de capoeiras.

Ainda assim é difícil imaginar cenários em que mulheres quitandeiras podiam ser também capoeiristas. Na época em que as “peritas” e “destemidas” mulheres capoeiras foram presas, o Rio já era dividido em dois grandes grupos (subdivididos em maltas) de capoeiras, exaltados em versos, suspeitos de uso político no jogo eleitoral e celebrizados em alguns romances: nagoas e guaiamuns. Infelizmente, porém, não conhecemos muito mais sobre as mulheres que viraram notícia em 1878.

Tia Ana

Tia Ana - Ceará - Século XIX

Ana, mais conhecida como Tia Ana, cujo nome completo e data de nascimento e morte ignoramos, liderou em 1835 uma revolta de escravizados na fazenda do português Francisco Antônio de Carvalho, apelidado de Marinheiro Chico. A propriedade ficava no interior do Ceará. Em razão do declínio das plantações de cana-de-açúcar e da consequente migração de mão de obra escravizada para as áreas cafeicultoras do Sudeste, a região vivia um momento de recessão. Por isso mesmo, o tratamento reservado aos cativos piorou, com os senhores buscando aproveitar ao máximo a sua mão de obra. O resultado foi o aumento da violência da parte tanto dos Senhores quanto dos escravizados.

Francisco de Carvalho criava gado e tinha plantações para sua subsistência. Armou-se, então, uma revolta dos escravizados da fazenda, que pretendia acabar com o tratamento indigno dado aos trabalhadores do campo. O estopim foram os castigos impostos a uma escravizada idosa e muito benquista.

Numa noite em que os capatazes dormiam no alpendre, os escravizados tomaram de assalto a residência: assassinaram todos os que estavam em seu interior e atearam fogo à casa grande. Alguns revoltosos fugiram em direção à Pernambuco, levando consigo os bens de valor que encontraram na casa, enquanto o grupo de tia Ana tratou de libertar Jerônimo Cabaceira, desafeto de Francisco de Carvalho, da cadeia. Francisco de Carvalho, assim que soube do ocorrido, retornou a sua fazenda. Foi, porém, acossado por Jerônimo Cabaceira e, perdendo o controle da situação, acabou por enforcar-se numa mangueira de sua propriedade. Essa não foi, com certeza, a maior rebelião escrava, nem um caso isolado. Mas mostra o protagonismo de mulheres na liderança de movimentos de coletivos de insurreição.

Félix Soares

Félix Soares - Rio Grande do Norte - Século XVIII

O africano Félix Soares foi o principal acusado da “conspiração dos negros do Congo”, na capitania do Rio Grande do Norte, em fins de 1772. Ele pertencia a algum ramo da família real do Congo. Na capitania do Rio Grande do Norte , com ajuda do índio letrado Domingos Tavares Félix entrou em contato com os comandantes das tropas de negros libertos. Autoridades coloniais, amedrontadas, mencionavam nas correspondências que legaram a existência de “projetos dos negros do Congo”. O que tramavam, não sabemos. Comentavam, porém, que todos os escravizados da província falavam abertamente em liberdade, posto terem descoberto que seriam forros pela lei de 16 de janeiro de 1773, em Portugal.

Escravizados, em várias áreas coloniais, acompanhavam com grande expectativa os detalhes, os desfechos, os conflitos, as discussões e os debates que ocorriam nas metrópoles, sobretudo os que poderiam atingi-los e beneficiá-los. Por ocasião da abolição da escravidão em Portugal, ficaram logo agitados, em 1769, acreditando que poderiam ser contemplados pela mesma legislação, caso essa se estendesse para as colônias.

Viajando em navios para metrópole, escravizados - muitos marinheiros, grumetes ou cativos domésticos vindos dos domínios do ultramar - tentavam fugir ou se passar por libertos eventos envolvendo disputas europeias e coloniais eram igualmente percebidos e avaliados por escravizados africanos libertos e nascidos nas colônias sempre atentos às conexões políticas e impactos legais. Durante a repressão e os interrogatórios, o africano Félix negou tudo.

Clara Courá e Mariana Xambá

Clara Courá e Mariana Xambá - Minas Gerais - século XVIII

Os poucos registros históricos das africanas Maria Xambá, Isabel Mina, Mariana da Costa e Clara Courá revelam, ainda que de forma parcial, a experiência de mulheres negras à frente de revoltas ou conspirações de escravizados e forros no Brasil colonial. As escravizadas africanas Mariana Xambá e Clara Courá estavam envolvidas numa conspiração descoberta em 1744 em Serro Frio, em Minas Gerais. Foram elas as principais articuladoras dos planos e das ações de um reinol, considerado mendicante e chamado pelo apelido de João Lourenço Negro. Ele se intitulava "príncipe encoberto", "ensinava a ler alguns rapazes" e se misturava com indígenas propagando ideias messiânicas e milenaristas.

No século XVIII, Minas Gerais testemunhou não só revoltas fiscais, quilombos e perseguições da Inquisição. Notícias de revoltas e conspirações de escravizados estavam por toda parte. Décadas antes, em 1719 e em 1725, as comarcas do Rio das Mortes e de Vila Rica tremeram diante de boatos e da repressão a revoltas.

Em 1725, as próprias autoridades lembraram dos riscos do possível levante que poderia ter acontecido em 1719, mas acabou “remediando-se aquela sublevação com as diferenças das Nações, querendo cada um para si o reinado”. A Revolta ocorreria numa quinta-feira de Endoenças - quinta-feira da Semana Santa. Os insurretos se aproveitariam da presença maciça da população nas igrejas para arrombar as casas e roubaram armas. A repressão foi imediata, sendo presos "os chamados os reis das Nações Mina e Angola e outros que estavam nomeados cabos e oficiais da sublevação”.

Rosa

Rosa - Rio Grande do Sul - Século XIX

Numa madrugada fria de 1870, Rosa atravessaria a fronteira do Uruguai, fugindo de uma fazenda criatório de gado localizada na margem direita do Imba, junto a Uruguaiana. Fazia parte de seu plano um projeto familiar. Nascida no Brasil e com 39 anos, Rosa fugiu acompanhada dos filhos Eugênio, Francisco, Fláubio, Domingos e “um ainda de peito”. Não teve, porém, total sucesso em sua empreitada, sendo capturada. Mas o que parecia uma escapada individual era parte de um movimento mais amplo que levou muitos escravizados a fugir de diversas áreas do Rio Grande do Sul e alcançar o Uruguai e a Argentina.

Migrações transnacionais nas fronteiras meridionais eram um expediente antigo, remontando ao período colonial. As zonas de fronteira eram conhecidos territórios de contrabando, de fugas e esconderijo de desertores militares ou criminosos. Evasões desse tipo conheceram novos capítulos com a Guerra dos Farrapos, quando escravizados avaliaram melhores oportunidades ante os muitos conflitos armados.

A passagem para o Uruguai não era uma garantia de liberdade pois lá também vigorava o regime escravocrata. Contudo, entre 1842 e 1846, a situação se alterou diante das leis abolicionistas daquele país: os filhos de escravizadas eram considerados livres, com o fim da escravidão no Uruguai, e depois, em 1853, na Argentina. Assim, fugas naquelas fronteiras podiam ser encaradas como perda de escravos por parte de estancieiros brasileiros, mas igualmente como ação apoiada por argentinos e uruguaios que temiam o expansionismo escravista brasileiro na região.

Os escravizados também tinham suas estratégias e assim pode ser entendida a atitude de Rosa. Ela procurava assegurar não só sua liberdade, como a de seus cinco filhos.

Joaquina

Joaquina - Amazonas - século XIX

Joaquina nasceu no Grão-Pará nos anos 1830, nos tempos da Cabanagem. Ainda pequena, Joaquina ganhou a vida como cozinheira, lavadeira, engomadeira, vendedora e circulou pelas ruas e igarapés. Acompanhou a criação da província do Amazonas, em 1852, bem como as alterações urbanas de Manaus.

Nessa época era escravizada de Antônio Lopes Braga, membro de uma família de comerciantes e militares com uma carreira pública bem-sucedida na política local. Manaus nessa época se caracterizava por ter uma grande população escravizada concentrada no núcleo urbano. E foi nesse contexto que Joaquina conheceu o índio José Maria, natural de Tefé e comerciante estabelecido na vila de Itacoatiara. No dia 21 de outubro de 1855, às 8 horas da noite, eles fugiram juntos. Em poucos minutos, já estavam às margens de um pequeno braço do Igarapé do Espírito Santo.

Antônio Braga publicou anúncio da fuga de sua cativa quase uma semana após o ocorrido. Esse intervalo foi suficiente para que o senhor juntasse informações exatas da hora dos trajes e do nome do “sedutor” da moça. O capitão publicou o anúncio também em Belém, e solicitou aqueles que achassem sua escrava “preta crioula, gorda e bem parecida e muito faladeira” que a entregasse a seu parente Luiz Antônio Lopes Braga. Mas esse não era um caso isolado: entre 1854 e 1858 houve 89 fugas na região.

Quase um ano depois, Joaquina reapareceu. Carregava consigo, em moeda corrente do império, a quantia de um Conto de réis e foi logo procurar pelo seu senhor. Joaquina voltara para comprar sua carta de liberdade. Braga hesitou: declarou ser a quantia insuficiente, mas por fim cedeu. Antônio Lopes Braga afirmou que assinava sem constrangimento algum, menos pela quantia que recebeu de Joaquina e mais “por ser este um ato de beneficência e em atenção aos serviços que me prestou durante o tempo de servidão, em vista dos quais lhe dou a plena liberdade”.

Esperança Garcia

Esperança Garcia - Piauí - Século XVIII

É de Esperança Garcia o mais antigo documento supostamente escrito por um escravizado, no caso escravizada, expressando as suas vontades, desejos e expectativas. Trata-se de uma carta datada de 6 de setembro de 1770, depositada no Arquivo Público do Piauí. Esperança Garcia era uma escravizada casada e que trabalhava na Fazenda dos Algodões, que era dos jesuítas até que eles foram expulsos do Brasil no final da década de 1760, e passou à administração da Coroa Portuguesa, que sublocava a militares e grandes fazendeiros locais.

A Fazenda dos Algodões era então administrada pelo Capitão Antônio Vieira do Couto. Mas Esperança não dirigiu sua carta nem a ele nem ao vice-rei; endereçou-a ao governador do Piauí. A cativa que àquela altura já tinha dois filhos um de 3 anos e outro de 7 meses não queria se afastar de amigos e parentes.

A missiva indica várias das suas expectativas com relação ao trabalho, à família e a formas de controle. Ela não queria mudar de fazenda e alegava que já fugira algumas vezes, tendo sido castigada por isso. Dizia ainda que seu filho sofrera “grandes trovoadas de pancadas” e que ela própria tinha virado um “colchão de pancadas”. Reivindicava instrução religiosa e sacramentos.

O principal motivo que a levara a fugir era mesmo de ordem familiar: ela queria voltar para sua antiga fazenda, pois desejava viver com seu marido e batizar sua filha. Mais nada ficou como registro de Esperança. O nome dela já representava uma legenda naquele mundo de escravidão e da liberdade que ela tentava conquistar.

Timóteo

Timóteo- Bahia - Século XIX

A trajetória de vida do cativo Timóteo, nascido provavelmente na Bahia, ficou marcada pelo fato de que por ser letrado conseguiu escrever sobre o que pensava a respeito das decisões que tomou.

Timóteo aparece nos registros como "mulato". Residente em Salvador, era escravizado da viúva Clara Joanna Rosa dos Santos. Apesar de contar com a estima senhorial, acabou acusado de furto e ameaçado de ser vendido em praça pública. Se isso acontecesse além da humilhação podia parar em fazendas cafeeiras do Sudeste o que o afastaria de parentes e amigos na comunidade escravizada urbana de Salvador.

Desesperado, Timóteo arrumou uma arma e tentou suicídio em 1861, mas antes escreveu uma carta na qual detalhou sua angústia, justificando a decisão de tirar a própria vida. Pedindo “perdão” afirmava: "Há muito tempo que tenho desejo de não existir, pois a vida me é aborrecida, porém não existindo não será mais, pois quem pode viver sem ter desgostos que vá vivendo". E finalizou dizendo: "as razões são outras, pois a sepultura será sabedora, e não este infame lugar, digo: e não esta terra de vivos".

Se por um lado eram raros os cativos letrados, não foram poucos os suicídios de escravizados, principalmente nas cidades onde os casos eram anotados nos registros policiais e noticiados pela imprensa. Enforcamentos, envenenamentos, afogamentos e disparos de armas de fogo foram as maneiras escolhidas por centenas de cativos para tirarem a própria vida. Também os casos de assédio, humilhações e ameaças produziam atmosferas psicológicas terríveis no ambiente do cativeiro. Castigos em troncos, gargalheiras, agressões frequentes e continuadas, além das condições de trabalho aviltantes, formavam situações-limites para Timóteo e outros.

Peregrina e Rosa

Peregrina e Rosa - Minas Gerais - Século XIX

Peregrina vivia em Sabará, Minas Gerais. Era escravizada do Brigadeiro Jacinto Pinto Ferreira e da esposa dele, Maria do Carmo Pinto Teixeira, que costumava ter reações iradas de ciúme toda vez que seu marido se engraçava com uma cativa. Conta-se que a sinhá Maria do Carmo comprara Rosa, que, segundo se dizia, tinha lindos dentes e um belo sorriso. Rosa foi vítima da má sorte ao chamar a atenção do patrão. Bastou então que Jacinto saísse em viagem para Maria do Carmo executar sua vingança, mandando os capangas arrancarem os dentes de Rosa, que, no retorno do marido, foram entregues a ele numa bandeja.

Não sabemos se é uma lenda ou uma história real, uma vez que muitas narrativas desse tipo que falam de senhoras enciumadas e senhores admoestando suas escravizadas se multiplicam com algumas variações na literatura. Sendo o caso verdadeiro ou não, o fato é que Maria do Carmo acabou sendo punida por conta da atitude recorrente da senhora. Peregrina arquitetou um plano para assassiná-la. O Estopim foram os maus tratos infligidos pela sinhá, que mandou prender outra escravizada da fazenda, Quitéria no tronco e a castigou com chicotadas.

Devolveu a violência com grandes doses da mesma linguagem. O crime ocorreu no dia 5 de junho de 1856 na residência do casal, quando, a golpes de machado e de mão de pilão, diversas escravizadas deram fim à vida da patroa.

Das envolvidas no crime, Peregrina e Rosa foram condenadas à morte. A execução de Rosa, que segundo a população local era inocente, gerou uma espécie de lenda em Sabará. Dizia-se que em certas ocasiões era possível ouvir os gemidos e protestos de inocência vindos do local da forca, onde as duas haviam sido enforcadas.

Ângela e Geralda

Ângela e Geralda - Rio de Janeiro - Século XIX

As experiências de duas mulheres escravizadas, Ângela e Geralda, são exemplos de situações-limite vivenciadas em meio a esse mundo que a escravidão criou. Elas mataram os próprios filhos. O ato extremo das duas foi considerado “crime de infanticídio”.

Em 1842, morando na Glória, Rio de Janeiro, a cativa Ângela Maria, nascida em Minas Gerais levou seus filhos até à praia, jogou-os ao mar querendo se suicidar. A tentativa falhou e a Ângela foi julgada e absolvida. Em seu depoimento admitiu: “eu atirei-me ao mar e não queria que eles ficassem padecendo, por isso atirei-me junto com eles”. A justificativa para tal ato foi a de ter sido acusada de roubo pela sua senhora, com ameaça de castigo e envio à Casa de Correção.

No mesmo bairro da Glória, em 1856, vivia a cativa Geralda, que tinha chegado do Rio Grande, ainda grávida e fora vendida como ama-de-leite. Acusada do vício de beber aguardente com erva-doce e de outras rebeldias, tentou matar seu filho. Alegou no julgamento que sua senhora garantiu que ela seria “castigada, mandada para a Casa de Correção, e de lá vendida sem seu filho”. Geralda declarou em juízo que desejava “antes morrer com seu filho do que se separar dele''.

As investigações de Lorena Telles nos apresentam dramas de mulheres como Ângela e Geralda, que vindas de outras províncias foram levadas à força para o Rio de Janeiro. Acabaram pois separadas de pais, mães, parentes e amigos. Além desse trauma carregavam outro: o de serem castigados, e pior, vendidas ou presas e, portanto, também serem afastadas de seus filhos. Diante de tantas separações o infanticídio seguido pela tentativa desesperada de suicídio parecia a melhor e única solução.