22.11.21

O outro lado dos "Anos Dourados"

Apresentamos aqui trechos do livro "Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus. A poetisa vivia na favela do Canindé, em São Paulo, e seu livro se passa nos chamados "Anos Dourados", o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Reflita sobre os aspectos apresentados em relação ao custo de vida no período e sobre a estabilidade do regime democrático.

Observação: a escrita é conforme o que é apresentado no livro.

20 de maio de 1958

...Quando cheguei do palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizerme que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu filho João José disseme:

—Pois é. A senhora disseme que não ia mais comer as coisas do lixo.

Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:

— É que eu tinha fé no Kubstchek.

— A senhora tinha fé e agora não tem mais?

— Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia. ...Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.

13 de junho de 1958

Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. E o terrestre. E o atacadista.

A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei dos juizes que é Deus. Foi em janeiro quando as aguas invadiu os armazéns e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guarda esperando alta de preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.

16 de agosto de 1958

Passei na sapataria. O senhor Jacó estava nervoso. Dizia que se viesse o comunismo ele havia de viver melhor, porque o que a fabrica produz não dá para as despesas.
Antigamente era os operarios que queria o comunismo. Agora são os patrões. O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.

24 de outubro de 1958

...Eu fiz café e mandei o José Carlos comprar 7 cruzeiros de pão. Dei-lhe uma cédula de 5 e 2 de aluminio, o dinheiro que está circulando no paíz, Fiquei nervosa quando contemplei o dinheiro de aluminio. O dinheiro devia ter mais valor que os generos. E no entretanto os generos tem mais valor que o dinheiro.

Tenho nojo, tenho pavor

Do dinheiro de alumínio

O dinheiro sem valor

Dinheiro do Juscelino.

5 de novembro de 1958

Comecei sentir fome. E quem está com fome não dorme.

Quando Jesus disse para as mulheres de Jerusalem: — “Não Chores por mim. Chorae por vós” — suas palavras profetisava o inverno do Senhor Juscelino. Penado de agruras para o povo brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que encontrar no lixo ou então dormir com fome.

Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica
rodando sem pegá-la?

É igual o governo do Juscelino!

22.9.21

Conjuração Baiana

 

Salvador, Bahia, 12 de agosto de 1798. São encontrados afixados em vários pontos da cidade dez pasquins, que exortavam o povo à revolução.

A Salvador do final do século XVIII é uma cidade comercial com um mercado efervescente, mas que escondia uma depressão econômica que esmagava o povo. A situação de depressão econômica, adicionada às restrições comerciais decorrentes do pacto colonial, a geral insatisfação em relação aos tributos, as preterições às pessoas de cor aos cargos mais elevados, forneciam um terreno fértil para as ideias iluministas, propagadas pelos recentes movimentos políticos (Revolução Francesa, Americana e Haitiana). Reuniões em círculos restritos já ocorriam desde 1793, manifestando repúdio à exploração colonial e manifestando simpatias à França revolucionária, e se acentuaram no ano de 1798.

Apesar da realidade de Salvador ter sido composta de “extremos” (um pequeno grupo de muitos ricos e outro, grande, de muitos pobres), a Conjuração foi composta, basicamente, de categorias médias e baixas da sociedade, dentre brancos, mestiços, soldados, comerciantes, artesãos, clérigos e funcionários régios. Os escravos não participaram deste movimento. Entre os principais contestadores estão Cipriano Barata, médico, Moniz Barreto, professor, Manuel Faustino, alfaiate, Lucas Dantas, soldado, e Luís Gonzaga das Virgens, também soldado. A participação de diversos alfaiates fez o movimento ser conhecido também como Conjuração dos Alfaiates.

As reivindicações, apesar dos desentendimentos, consistiam na propagação da liberdade econômica (abertura dos portos) e no reconhecimento do papel do indivíduo na sociedade e o fim da discriminação conforme a etnia ou função social (igualdade de direitos). No universo político, buscando o fim do domínio europeu, pregavam um governo republicano “democrático, livre e independente.” A abolição da escravidão é algo que é incerto nas análises sobre o movimento.

Com a publicação de pasquins aumenta a popularização do movimento. O governador Dom Fernando José de Portugal intervém ao tomar conhecimento da situação. O governador, apesar de querer minimizar a participação da elite local no movimento (que à esta altura haviam debandado), instaurou uma Devassa para descobrir os autores dos pasquins e seus líderes. Ao final, quatro réus foram condenados à morte e seis ao degredo.

Inconfidência Carioca

 

Nem Inconfidência, tampouco Conjuração. O movimento que receberia a designação de “Inconfidência Carioca” se restringiu única e exclusivamente ao campo das ideias. Sem nenhum planejamento prático para tomada do poder, os letrados do Rio de Janeiro se reuniam para discutir novas e velhas ideias na Sociedade Literária do Rio de Janeiro, fundada pelo Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Souza em 1786. Esta Sociedade era composta por intelectuais da colônia e da metrópole que, utilizando as ciências humanísticas e seus autores costumavam criticar. Ali conversavam sobre astronomia, filosofia, as novidades da Europa e religião.

Em 1790, com a saída de Luís de Vasconcelos e Souza e a chegada do Conde de Resende para ser vice-rei, a Sociedade cessou suas atividades. Em 1794, contudo, as reuniões voltaram a acontecer. Com o passar do tempo, os temas das conversações passaram a ser cada vez mais filosóficos e políticos, versando sobre a crítica da realidade colonial confrontada aos ideais de liberdade, assim como debatiam o direito dinástico e o poder dos reis. O principal líder da Sociedade era Manuel Inácio de Souza Alvarenga, poeta e professor de retórica. Outro importante membro era o Dr. Mariano José Pereira da Fonseca, bacharel em direito pela Universidade de Coimbra. O Conde de Resende fica a par das conversas, mas acredita não ter elementos para fechar a Sociedade.

Porém, após as denúncias de José da Silva Frade e do Frei Raimundo da Anunciação, a Sociedade é fechada em 1794. Neste mesmo ano seus membros são presos antes de ocorrer a Devassa. O resultado dessa Devassa foi inconsistente, pois as acusações não passavam de críticas e censuras feitas a religiosos, conceito sobre a inferioridade das monarquias e apreciações pouco positivas da força portuguesa que se empenhava na campanha contra a França revolucionária. Sem provas plausíveis e fundamentos para a condenação, os presos são soltos três anos depois, após ordem da rainha Dona Maria I.

Inconfidência Mineira

 

A Inconfidência (ou Conjuração) Mineira foi uma conspiração visando uma futura revolta contra a Coroa Portuguesa entre o fim de 1788 e o começo de 1789. Não passou de uma conspiração, já que seus planos foram descobertos e seus membros presos antes que a revolta se iniciasse.

Mudanças drásticas alcançam Minas Gerais durante a década de 80 do século XVIII, especialmente com novas orientações da administração régia e a difusão das ideias críticas do iluminismo. Sob orientação da Coroa, em 1788, o Visconde de Barbacena, então governador da capitania, confronta a elite local que detinha o poder. A intensificação do controle sobre o comércio, as cobranças das dívidas de contratos atrasados, a ameaça de mais uma derrama (confisco de objetos de ouro de toda a população até alcançar a cota estipulada pela Coroa) incendeiam os ânimos.

Inicialmente organizado pelos senhores de escravos e gado, grandes comerciantes e mineradores, o movimento conspiratório passou a agrupar diversos outros grupos, principalmente os que tinham funções letradas, como advogados, dentistas, clérigos e funcionários régios. Os envolvidos, em sua maioria, estavam totalmente endividados devido ao declínio da mineração, e viam no rompimento com Portugal a saída de seus problemas financeiros, inspirados no exemplo dos Estados Unidos.

Os revoltosos, apesar de reunidos e organizados, não apresentavam coesão em todas as suas ideias e propostas. Pregavam o livre comércio e o livre extrativismo, redirecionamento dos tributos diretamente para melhorias na colônia, mudança na organização do poder e na administração interna de Minas. Para isso, constituiriam uma república independente, com capital em São João del Rei; criação de uma universidade em Ouro Preto, além de hospitais, escolas e casas de caridade. Não tinham um posicionamento claro sobre o tema da escravidão.

Antes de ter início o movimento rebelde, que previa a expulsão do governador para Portugal, em junho de 1789 Barbacena recebe uma denúncia da conspiração e suspende a derrama, que serviria como deflagrador da Inconfidência. Tem início a fase de perseguição e da Devassa, que leva à prisão e degredo diversos condenados. O Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, segue para as masmorras no Rio de Janeiro junto de outros. Em 1791, o julgamento foi presidido pelo vice-Rei, condenando à morte 11 envolvidos e ao degredo outros sete. Porém, a rainha, fazendo segredo até 18 de abril de 1792, comutou as penas dos condenados à morte em degredo, exceto Tiradentes. Três dias depois o alferes foi enforcado e esquartejado em praça pública e seu corpo espalhado pelas estradas e praças de Minas Gerais para servir de exemplo.

Revolta dos Dragões

 

Em 1737 foi criado o forte Jesus-Maria-José, no que é hoje a cidade de Rio Grande, com a finalidade de solidificar o domínio português no sul da América. Foi estabelecido um grupo militar, denominado Regimento dos Dragões, para guarnecer o forte. As condições de vida, entretanto, foram extremamente difíceis para os primeiros habitantes desse local.

As promessas da Coroa Portuguesa aos soldados e povoadores, de que teriam toda a infraestrutura e mantimentos necessários, mostraram-se ilusórias. O cotidiano dos soldados era caracterizado por extrema precariedade. Em suas rações, careciam de mantimentos básicos e já não recebiam itens como carne ou farinha, base da alimentação militar. Eram proibidos de caçar ou de pescar. Ademais, havia muitas outras restrições impostas ao Corpo dos Dragões. Não podiam ter cavalos, estavam proibidos de transitar livremente, sofriam três inspeções diárias, que muitas vezes terminavam em “prisões e pancadas”.

No dia 5 de janeiro de 1742, a infantaria, a artilharia e os soldados do Regimento dos Dragões iniciaram um motim contra as precárias condições de vida. De acordo com os próprios militares, seus protestos eram contra o governador da capitania Diogo Osório Cardoso (1740 - 1752) e as dificuldades que eles enfrentavam sob sua administração, e não tinham o objetivo de “usurpar, nem perturbar a jurisdição real, nem fazer sublevações contra a fé pública e serviço de S. Majestade e suas ordens reais”. Esses militares se encontravam com o pagamento de seus soldos atrasados há mais de 20 meses.

As reivindicações dos revoltosos incluíam: direito de pesca, o fim das várias inspeções diárias, melhores tratamentos médicos, o fim das punições por suspeita de deserção, o encerramento das torturas e castigos e o afastamento do capitão Tomás Luís Osório. Os militares também contaram com o apoio ativo dos moradores. Afinal, a precariedade da estrutura e dos alimentos não era uma dificuldade somente dos soldados, mas de todos os habitantes. Dessa forma, eles não somente apoiaram como também participaram do movimento. Ocuparam a praça de guerra, elegeram oficiais e ameaçaram passar para o domínio espanhol.

Em 29 de março de 1742, o motim terminou. Embora pagando apenas um terço dos soldos atrasados, os revoltosos tiveram grande parte de suas demandas atendidas por Gomes Freire de Andrade, governador do Rio de Janeiro, ao qual a administração de Rio Grande era subordinada. Foi permitido que os soldados, dentro de alguns limites, obtivessem canoas e cavalos, os oficiais que cometeram excessos foram punidos e aqueles que sofreram maus tratos puderam sair daquele povoado. Além disso, em 15 de fevereiro de 1742, o governador do Rio de Janeiro assinou um termo de notificação que perdoou os revoltosos.

Resistência Guaicuru

 

O território dos atuais Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, pelo Tratado de Tordesilhas, era de posse espanhola. Com a ocupação do que é hoje o Paraguai, começaram os conflitos entre os espanhóis e os guaicurus, um dos vários grupos indígenas que ocupavam a região. Os guaicurus eram caçadores e coletores e inimigos de longa data dos guaranis, frequentemente atacando suas roças em tempo de colheita. No século XVII, os guaicurus adotaram o cavalo, e seus ataques passaram a ser mais imprevisíveis.

O avanço português sobre o que é atualmente o Centro-Oeste brasileiro, especialmente por meio do desenvolvimento da atividade aurífera em Cuiabá no primeiro quartel do século XVIII, interferiu no território dominado pelos temidos guaicurus às margens do rio Paraguai. Os guaicurus lutavam para vencer: eram altamente treinados e montavam seus cavalos com grande habilidade. Nesses ataques, aliavam-se a outros grupos indígenas, como os paiaguás, que eram exímios usuários de canoas. Já em 1734 uma expedição punitiva partia para Cuiabá e outras se seguiriam, mas sem grande sucesso.

A partir de 1768, com a dissolução da aliança com os paiaguás, o Império Português começou a obter um domínio da região do curso superior do Rio Paraguai. Em 1778, foram construídos fortes onde atualmente se localizam as cidades de Corumbá e Miranda, no atual Mato Grosso do Sul. Os guaicurus eram os melhores aliados que se poderia querer por aquelas bandas. Os portugueses ofereceram mantimentos e utensílios, além de cavalos e roupas. Mas não foi sem tropeços que ocorreu a aproximação. Em 1778, os guaicurus se aproximaram do forte para comerciar e, como parte do negócio, ofereceram algumas de suas mulheres aos soldados. Enquanto os portugueses estavam entretidos com as índias, foram atacados de surpresa e 54 deles morreram.

Mas o governo português estava decidido a ter o grupo do seu lado. Em 1791, o Capitão General de Mato Grosso, João Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, assinou um tratado de paz com os guaicurus. Depois disso, eles passaram a atuar como vaqueiros para os brasileiros, mas mantiveram a sua liberdade.

Guerra dos Manaus

 

Na primeira metade do século XVIII, a região do vale do rio Amazonas sofreu com uma epidemia de varíola que devastou a população indígena escravizada que estava em missões religiosas. Diante da perda gradativa de indígenas como mão de obra, os colonos luso-brasileiros decidiram realizar campanhas de captura em tribos do vale do Amazonas.

Durante a campanha de 1723, os colonos se encontraram com a tribo dos Manaus ou Manáos, liderados pelo guerreiro Ajuricaba. Esta tribo impedia o acesso dos luso-brasileiros aos indígenas dos rios acima do Amazonas. No encontro, a tropa de colonos teria assassinado o filho do líder indígena, precipitando a revolta da tribo, que em represália mataram um soldado e um índio aliado dos luso-brasileiros. Este seria só o primeiro ato de revolta que seguiria com a invasão e destruição de aldeias aliadas aos portugueses e a recusa de comercializar com estes.

Diante da campanha frustrada o governador do Grão-Pará à época (atualmente Pará e Amazonas), João da Maia da Gama enviou Belchior Mendes de Moraes para levantar uma investigação. Belchior apurou que a tribo indígena praticava canibalismo, mantinham relações incestuosas e eram aliados dos holandeses. Nada disso foi comprovado em fontes, mas tudo foi utilizado como justificativas para uma guerra. Após o inquérito, o governador concluiu que era preciso combater os Manaus, pois se assim continuasse certamente influenciariam outros povos indígenas e dessa forma, poderiam se aliar aos holandeses possibilitando uma invasão estrangeira ao território português na Amazônia.

Como argumento jurídico para a declaração de guerra foi evocada a lei de 28 de abril de 1688 que permitia a prática da “guerra justa”. Diante da demora nas autorizações do rei D. João V, o governador Maia da Gama resolveu localmente travar a guerra em 1723 contra os Manaus. Depois de quatro anos de conflitos, Ajuricaba foi preso e enviado a Belém. Durante a viagem, teria tentado se rebelar novamente, provocando um motim na canoa em que seguiam os índios presos. Este motim conseguiu ser sufocado, mas Ajuricaba, que estava preso em ferros, mostrou que não se entregaria, dessa vez, atirando-se na água para escapar de uma punição mais pesada, ato que o tornaria um herói e mito, já que o corpo nunca foi encontrado.

Entretanto, a campanha contra os Manaus não se encerrou após o suicídio de Ajuricaba, ocorrido em 1727. Os colonos só conseguiram reduzir às mortes e escravizações essa tribo definitivamente após 1730. Com a eliminação desse obstáculo, regularizou-se o fornecimento de mão de obra escravizada indígena, sobretudo destinada a trabalhar nas lavouras locais.

Revolta de Vila Rica

 

Transcorrendo entre junho e julho de 1720, esta revolta na Capitania de São Paulo e Minas do Ouro trazia a marca de uma situação comum na região, onde funcionários da Coroa portuguesa se viam obrigados, muitas vezes, a se dobrarem diante das vontades da elite local, principalmente com relação à administração e à cobrança de impostos. Além da resistência à arrecadação do quinto do ouro, colaboraram para a inquietação social as reformas na organização militar (afastando oficiais e cortando suprimentos) e a expulsão de clérigos das Minas Gerais.

A liderança do movimento esteve dividida entre Filipe dos Santos, como cabeça do levante e principal agitador, e outros como Pascoal da Silva Guimarães, Dr. Manoel Mosqueira da Rosa, Frei Vicente Botelho e Frei Francisco de Monte Alverne. Quanto aos grupos sociais, havia comerciantes, mineradores, militares, letrados e religiosos.

O anúncio de reformas na arrecadação do quinto, pela criação da Casa de Fundição e Moeda, o que tornava proibido o comum método de utilização do “Ouro em pó” e fornecia grande controle à Coroa, despertou a ira e encabeçou a lista de reivindicações dos revoltosos. A criação da Casa de Fundição, prevista para julho de 1720, foi antecipada sem prévio aviso para junho, atiçando as acaloradas relações entre a população mineira e a administração.

O primeiro alvo dos amotinados foi o Ouvidor Martinho Vieira de Freitas que sob a acusação de estar planejando ações judiciais contra os moradores de Vila Rica (hoje, Ouro Preto), tem a sua casa invadida no dia 29 de junho. Após alguns dias, o governador Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos tenta apaziguar os ânimos, com promessas de perdão e o atendimento das exigências. Porém, com a demora das negociações, a “turba amotinada” sequestra alguns vereadores da câmara de Vila Rica e marcha em direção ao governador que se deslocara para a vila de Ribeirão do Carmo. Lá, além do armistício, exigiram 18 pontos, entre eles a não instalação da Casa de Fundição, diminuição de alguns impostos, tendo como contrapartida o pagamento anual de 30 arrobas asseguradas pela população ao Rei. Ao longo dos dias vários acordos são tentados e escritos. Os rebeldes, apesar de sofrerem com o pagamento dos direitos régios, permaneciam fiel ao Rei, a Portugal e a seus direitos e deveres costumeiros.

No processo de pacificação, o conde-governador aceita as exigências e, com a relativa calmaria restabelecida, aciona a Companhia dos Dragões (tropa de elite vinda ao Brasil, dentre outras funções, para reprimir motins e levantes) e massacra os envolvidos. Um dos principais idealizadores da revolta, Filipe dos Santos, é enforcado e esquartejado em praça pública. Os outros líderes têm suas casas queimadas e seus bens saqueados.

Revolta dos Mascates

 

No alvorecer da segunda década do século XVIII, eclode em Pernambuco um conflito explosivo entre as cidades de Olinda e Recife. A primeira, dominada em grande parte por uma elite latifundiária, tinha sua principal atividade baseada na produção e venda de açúcar. O declínio desse produto resultou na crescente dependência, por parte dessa elite, em relação aos comerciantes do Recife que, em sua maioria portugueses, estavam engajados em atividades mercantis realizando empréstimos com juros altos.

Os recifenses eram mais ricos, mas não tinham poder nenhum na administração da vila de Olinda, controlada pelos senhores de engenho.  Dado o desenvolvimento econômico do Recife, os comerciantes, que também eram intitulados "mascates" (termo pejorativo que designava pequenos mercadores ambulantes), recorreram à Coroa Portuguesa solicitando sua emancipação e o título de Vila.

A Coroa concedeu o pedido, autorizando a criação da Câmara de Vereadores no Recife em 1710, oficializando a separação de Olinda. A situação não foi bem recebida pelos senhores de engenho olindenses que, revoltados com a elevação do Recife e temendo a perda de sua condição de superioridade política em Pernambuco, invadiram a localidade, depredando tanto a Câmara quanto o Pelourinho. A elite de Olinda lembrava a Coroa de supostos direitos adquiridos nos tempos da expulsão dos holandeses do Nordeste (1645-1654).

Esses episódios ocorreram em 1710. O contra-ataque dos recifenses aconteceria no ano seguinte, em 1711, com a invasão da cidade de Olinda e destruição de algumas Vilas, plantações e engenhos da região. Diante desses conflitos, a Coroa começou a temer por uma desestabilização de seu poder e enviou um novo responsável para a ocupação do cargo de governador, Félix José de Mendonça, além de tropas para contenção da revolta.

O resultado foi a prisão dos líderes olindenses e a consolidação da autonomia de Recife em relação à Olinda. Em 1712, Recife foi elevada à capital de Pernambuco, sua Câmara e Pelouro foram reconstruídos e os sediciosos da nobreza de Olinda receberam perdão concedido pelo bispo. No ano de 1714, D. João V concedeu anistia a todos os envolvidos na sublevação. Além disso, concedeu aos senhores de engenho de Olinda o privilégio da manutenção de suas plantações e perdão de suas dívidas, em troca de paz.

Revolta de Beckman

Pelo povo do Maranhão morrerei contente”. (Manuel Beckman)

"Saiu pela brecha por onde tinha entrado o monstruoso corpo daquela desordem’’. A frase dita por Bernardo Pereira de Berredo, historiador e administrador colonial português, representa a situação de desagrado com o governador Francisco de Sá Meneses, principalmente pelo descaso em relação à miséria em que se encontrava o Estado do Maranhão. Um dos problemas principais dos colonos era referente à mão de obra: não tendo recursos para comprar escravizados africanos, necessitavam recorrer à escravização de indígenas. No entanto, esta era proibida; os conflitos com os jesuítas, que tinham aldeamentos na região, eram frequentes.

Em 1682, para tentar remediar a pobreza, começou a atuar a Companhia do Comércio do Maranhão, sociedade anônima com sede em Lisboa, que poderia explorar o monopólio da venda de alguns produtos aos colonos, como vinho, azeite, bacalhau e farinha, e comprar os produtos fabricados no Maranhão, como o cacau, o cravo e o tabaco. Além disso, a Companhia deveria fornecer 500 escravizados africanos por ano aos colonos a um preço razoável. No entanto, a Companhia não cumpriu a sua parte, causando insatisfação nos latifundiários, assim como em outros setores da sociedade maranhense. Assim, as causas da revolta foram duas: a insatisfação com a Companhia de Comércio e o desejo de utilizar mão de obra escravizada indígena.

Na véspera da procissão de Nosso Senhor dos Passos, em 25 de fevereiro de 1684, os rebeldes, liderados pelos irmãos Manuel e Tomás Beckman, tomam a cidade de São Luís. Uma vez no poder, instauram uma junta de governo composta por representantes dos latifundiários. Expulsaram os jesuítas e aboliram o monopólio da Compnahia de Comércio. Esta última medida, posteriormente, foi referendada pelo governo português.

Após tomarem a cidade, com o tempo o movimento foi perdendo resistência e apoio por parte da população, pelos conflitos internos dentro do grupo dos latifundiários. Com a chegada do novo governador Gomes Freire de Andrade em maio de 1685, amparado por tropas portugueses, é decretada a prisão e posterior execução dos principais líderes da revolta, Manuel Beckman e Jorge de Sampaio de Carvalho. Tomás Beckman e Eugênio Ribeiro Maranhão são enviados a Lisboa e processados; posteriormente, foram exilados em Pernambuco. Os jesuítas retornaram. Ao final de 1685, a Revolta de Beckman tinha chegado ao fim.

Revolta da Cachaça


Na Capitania do Rio de Janeiro em 31 de janeiro de 1660, a Câmara dos Vereadores (contrariando as ordens da Coroa que proibia a produção e comércio de manufaturas na colônia, que incluía a de destilados) propôs a liberação da produção de cachaça na Capitania. A região estava em crise econômica, por conta da queda dos preços do açúcar no mercado mundial após a ocupação holandesa do Nordeste, e a produção de aguardente era uma opção rentável aos senhores de engenho locais, em especial porque era utilizada como moeda de troca no comércio de escravizados.

O governador, Salvador Correia de Sá e Benevides, concorda; no entanto, estipula uma série de taxas a serem cobradas. A mais marcante delas foi a taxa sobre a defesa e proteção, para reorganizar e aumentar o efetivo do exército. Os ricos deveriam pagar um valor padrão e os demais pagariam conforme suas posses. Após várias tentativas pacíficas de tentar derrubar essa medida, os fazendeiros e grande parte da população liderada pelo “povo” da freguesia de São Gonçalo revoltaram-se contra a cobrança da taxa.

Em novembro de 1660, marcham em direção a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro e exigem, não só o fim da taxa, como também a devolução do que já havia sido pago, e contra os abusos de Salvador Correia de Sá. Este também era acusado de se apropriar de boa parte dos recursos arrecadados com as taxas para si e seus seguidores mais próximos. Com o apoio da população e dos soldados, aprisionaram o governador em exercício, Tomé de Alvarenga, e nomeiam (à força) um novo governador, Agostinho Barbalho. Este, porém, tinha o apoio do governador Salvador de Sá (que estava em São Paulo, a par da situação), começou a ser malvisto pelos revoltosos e foi destituído do cargo no dia 8 de fevereiro de 1661.

O novo governador, Jerônimo Barbalho tomou ações autoritárias contra os aliados de Salvador de Sá. Este, por sua vez, decidiu reagir: organizando uma frota de navios vindos de São Paulo e da Bahia, invadiu o Rio de Janeiro no dia 6 de abril de 1661 e, sem quase nenhuma resistência, retomou o poder. Aprisiona todos os revoltosos e executa Jerônimo Barbalho na forca.

Porém, Salvador de Sá acaba sendo afastado do cargo pelo Conselho Ultramarino de Portugal, sob a acusação de abuso de poder, conivência e trinta outras acusações feitas pela população. Posteriormente, três dos principais líderes do movimento, que haviam sido presos e enviados à Lisboa, foram inocentados. Os impostos instituídos por Salvador de Sá foram abolidos e a produção e comércio da cachaça passaram a ocorrer sem maiores problemas, mesmo dentro do quadro do pacto colonial. Era uma forma de Portugal acalmar os ânimos e estabelecer seu controle no Rio de Janeiro.

28.6.21

Maria do Egito

Maria do Egito - Sergipe - século XIX

Maria do Egito nasceu no ano de 1828. Em Aracaju, em 1858, ela moveu um processo contra Evaristo José de Santana, seu senhor, no qual reclamava seu direito à alforria. Conforme mostra Luiz Mott, corajosa ela declarou nos autos que trocou sua virgindade pela liberdade. Além do mais, alegava que a relação de 14 anos que estabeleceu com seu proprietário era violenta por parte dele, que sempre adiava a sua prometida liberdade.

Na cidade o relacionamento entre a escravizada e Evaristo José era público, a despeito de ele ser casado. No entanto, para tentar disfarçar e como era costume, o proprietário tratou de arranjar um casamento entre a cativa e seu sobrinho, João Barbosa de Brito, de quem Maria acabou engravidando. Ao tomar conhecimento do fato, Evaristo rasgou a carta de alforria que tinha prometido e lavrado, e exigiu o retorno imediato da moça ao cativeiro. Não contente, bateu nela e lhe provocou o aborto. Foi nesse ambiente que Maria resolveu abrir um libelo civil pela liberdade e contra o arbítrio de seu senhor. A tese da Defesa era de que a escravizada já adquirira a liberdade por direito, independentemente da carta de alforria emitida por seu proprietário, uma vez que havia se deitado com seu senhor por muito tempo. A própria Maria do Egito, consciente de seus direitos, afirmou em juízo que, sob a promessa de libertar, deixou-se levar de sua virgindade por amor único de gozar deste maior bem que pode usufruir um ente humano - a liberdade.

O juiz de paz deu ganho de causa ao senhor. Esse episódio ilustra à perfeição uma situação que se repetia com muitas escravizadas em várias senzalas espalhadas pelo Brasil.

Liberata

Liberata - Santa Catarina - Séculos XVIII e XIX

Nascida por volta de 1780 na vila de Paranaguá, atual Paraná, Liberata sempre seguiu o norte da liberdade. Ela era filha de africanos escravizados. Pertencia a Custódio Rodrigues. Em 1790, foi vendida para José Vieira Rebello morador no Desterro (atual Florianópolis. Foi provavelmente nessa época que Liberata começou a conhecer o assédio senhorial, com perseguições e abusos sexuais. Foram também tempo de muito medo, pois ela temia que sua senhora e a filha desta atentassem para esses abusos costumeiros do seu senhor, o que resultaria em castigos físicos ainda mais brutais e também na possível venda da escravizada.

Em 1793 Liberata teve um filho com seu senhor, que prometera dar a liberdade a ambos Com o nome de José, o menino foi batizado e reconhecido na Freguesia de São Miguel. Mas Liberata seria alvo de outra perseguição: a de sua senhora. Para piorar a situação, ela engravidaria novamente.

Liberata tinha, entretanto, planos familiares próprios. Resolveu se casar com o pardo José e também ofereceu dinheiro para comprar sua liberdade. Seu senhor, quem sabe motivado por ciúmes, não consentiu no casamento nem concordou com os valores pagos para o pagamento da alforria. Ainda no ano de 1813, teriam início as batalhas judiciais de Liberata, então com 33 anos, para garantir a sua liberdade. Uma vitória parcial foi conquistada, com a fixação de valores para o pagamento da liberdade de Liberata; ela estava finalmente livre.

Francisco Antônio da Costa

Francisco Antônio da Costa - Pernambuco - Século XIX

Foram muitos os escravizados fugidos e os que procuram Refúgio se alistando em tropas auxiliares e milícias de homens pardos e negros livres, incluindo libertos, no Brasil do século XVIII e da primeira metade do século XIX. E essa é a história de Francisco Antônio da Costa, que acabou se notabilizando como destacado combatente militar na Confederação do Equador, que ocorreu em Pernambuco em 1824. Francisco Mina era um cativo africano, da costa ocidental, que tinha conquistado a sua liberdade em 1811.

No entanto, entre 1824 e 1828, Dona Maria Luís Monteiro, sua antiga proprietária, tentou revogar a alforria, alegando que Francisco não teria cumprido o registrado na sua libertação condicional, que estipulava que deveria manter-se trabalhando e que só ficaria livre depois da morte dela. Em vez disso, Francisco passou a desrespeitar Dona Maria, já se julgando liberto. Ele se casou e armou uma venda com sua esposa, vivendo como pessoas livres.

Dona Maria transformou tudo num processo civil para revogar a liberdade de Francisco. Entre a alforria condicional em 1811 e o processo iniciado em 1824, que ficou sob decisão judicial até 1828, passaram-se 13 anos. Nesse meio tempo Francisco, viveu como um homem livre e foi assim que se alistou nas milícias, no contexto da independência, em 1822. Francisco não queria apenas se esconder mas reafirmar sua identidade como um homem livre que poderia se alistar, o que era entendido como uma distinção entre os auxiliares de libertos e patos.

Mesmo como herói militar. Francisco da Costa perdeu a sua liberdade nos campos jurídicos, voltando a ser o cativo Francisco em 1828.

Agostinha

Agostinha - São Paulo - Século XIX

Vários escravizados, sobretudo no século XIX, acionaram a justiça com ações de liberdade em que reivindicavam alforria. Reclamavam de castigos, das condições de trabalho e do cativeiro ilegal; porém muitos foram os cativos que ficaram submetidos às violências de seus senhores, sobretudo em áreas rurais. Mesmo quando faziam denúncias que podiam ir para imprensa e gerar processos criminais, os fazendeiros acabavam sendo inocentados. Ou nem chegavam a serem investigados pelas autoridades policiais.

Agostinha nasceu cativa no Brasil, no segundo quartel do século 19. Em 1857, o jornal Avassoyaba publicou queixas de Agostinha, que revelaram o cotidiano de violência numa fazenda de café localizada em Campinas. Segundo a escravizada, havia na fazenda um cemitério clandestino, denominado “cemitério de escravos assassinados”. Em face de tais acusações, a sociedade local se viu diante de um debate público. Agostinha afirmou ter fugido pois estava resolvida firmemente a suicidar-se antes do que para lá voltar.

As delações de Agostinha ganharam desdobramentos com novas investigações e mais denúncias anônimas. Castigos e mortes executados pelo feitor, com a total conivência de Barros Dias e de sua esposa, seriam - segundo algumas versões - provocadas pelo “medo senhorial” - pois diziam temer serem envenenados e acusavam a existência de feiticeiros entre os cativos da Fazenda.

As repercussões aumentaram. Em 1861 foi instaurada uma queixa-crime contra Barros Dias e sua esposa, Inácia Joaquina Duarte, e o feitor Eleutério de Andrade, que era ele próprio um escravizado. Estava em jogo o julgamento criminal e moral de um importante fazendeiro da região, além da possibilidade de intervenções jurídicas no poder senhorial. Barros Dias acabaria absolvido, mas a opinião pública provocou grandes constrangimentos aos senhores de Campinas - coração do mundo do café paulista.

Maria Rita

Maria Rita - Rio Grande do Sul - século XIX

Maria Rita, uma africana nagô, pode ter chegado a Porto Alegre - via Salvador - em meados da década de 1830. Ali ela atuaria como quitandeira, sendo cativa de outra africana ocidental, a liberta Felisberta, que há de ter chegado à cidade 10 a 15 anos antes. Também quitandeira, Felisberta fora alforriada em 1840, e em 1847 adquiriu Maria Rita por 650 mil réis. Essa não seria uma prática pouco usual em diversos cenários escravistas urbanos: libertos africanos compravam escravizados africanos colocando muitos desses cativos para atuar com eles no mercado de serviços, especialmente como quitandeiras e comerciantes. Ainda como escravizada, Maria Rita conheceu o africano liberto Antônio José Feliciano que chegou a Porto Alegre no ano de 1846. Os dois eram africanos ocidentais, e em 1849 tiveram um filho de nome Sabino. Em 1850, Felisberta migrou para Salvador, levando consigo seus escravizados. Maria Rita continuaria a atuar como quitandeira, e pode ter adquirido a liberdade em meados da década de 1860. Vamos localizá-la novamente mais de 30 anos depois por causa de uma carta que redigiu para o seu filho Sabino em 1892. Sabino, que assinava como Sabino Antônio Feliciano, trabalhava como aprendiz de pedreiro em Salvador e só conseguiu a liberdade aos 15 anos contando com ajuda do pai que ele mandou um conto e duzentos mil réis para a sua alforria. Sabino teria voltado para Porto Alegre a fim de viver perto do pai e dos meios-irmãos. Na missiva sua mãe tratava da possibilidade de mudar-se para o sul. A africana que então devia ter entre 70 e 75 anos, o tratava por “meu querido filho” e pedia que lhe enviasse 300 ou 400 mil réis, quem sabe para que voltasse a Porto Alegre onde pretendia viver seus últimos anos, mas Sabino faleceu repentinamente.

Felício de Arruda Botelho

Felício de Arruda Botelho - São Paulo - Século XIX

Tudo indica que Felício era filho de africanos e que nasceu como escravizado em 1847, provavelmente em Piracicaba. Já em 1852 trabalhava. Era propriedade de Francisca Teodora de Arruda Botelho, primeira esposa do Conde do Pinhal, e a quem Felício considerava uma “mãe”.

Assim que pode trabalhar foi enviado para a fazenda de propriedade do casal, testemunhando a chegada do café, que ocupou todas as partes da economia, da terra e da mão de obra no Oeste paulista. Ainda bem jovem, Felício presenciou uma mudança demográfica com impacto cultural e étnico ainda pouco estudado: o Oeste paulista abarrotado de cativos africanos chegados do tráfico ilegal até 1850, mais cativos nascidos no Brasil e outros tantos escravizados trazidos via tráfico interprovincial das províncias do Norte.

Consta que Felício se casou no ano de 1862 com Joaquina. Ele não só se casou bem jovem como ganhou mais responsabilidade na fazenda ao ser escolhido como feitor. Lembrava-se de ter implorado ao conde, e mesmo chorado, pois "não queria ser ser feitor, mas ele disse que escravo faz o que a senhoria manda". Provavelmente sabia das dificuldades que teria para comandar cativos não só mais velhos como de diferentes origens, muitos recém-chegados. Deveria manter a disciplina e até mesmo castigar a alguns. Como um dos cativos mais antigos da fazenda, aquele que ajudou a montar a base inicial da plantação, nascido no Brasil, ele foi escolhido como o escravizado ideal para ensinar, manter a disciplina e controlar os demais. Acredita-se que Felício era considerado um escravo de confiança, grande e fiel amigo do Conde do Pinhal, por quem nutria verdadeira estima e veneração.

Ele conquistou a alforria, mas permaneceu atuando nas fazendas do Conde do Pinhal. Ali tinha sua família, parentes e reconhecimento senhorial. No pós-abolição ele se decepcionou com os herdeiros do Conde, a quem acusou de ingratidão. Felício ganhou um pedacinho de terra em Jaú, onde viveu até seu falecimento em 1920.

Emília do Patrocínio

Emília do Patrocínio - Rio de Janeiro - Século XIX

Emília do Patrocínio foi uma africana ocidental empreendedora que viveu no Rio de Janeiro. Era quitandeira e com o tempo se tornou uma grande liderança econômica no mercado carioca.

A primeira referência que se tem de Emília data de 1836. Ela aparece como uma escravizada, pertencente a Teodora Maria do Patrocínio, e batizando uma filha na Freguesia de São José, no centro do Rio. Em 1839 surge um registro da africana comprando a sua liberdade por 500 mil réis. Meses antes, a filha dela também tinha conseguido carta de alforria. Emília se transformaria em quitandeira, mulher livre, constituindo parte de uma “elite” de africanos em cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís. Tratava-se de africanos que chegaram como escravizados a partir do século XVIII, conquistaram sua alforria, depois compraram cativos e passaram a atuar economicamente na vida urbana.

No início da década de 1850 Emília já aparece nos registros como uma comerciante africana liberta que atuava no mercado da Candelária e possuía vários escravizados. Entre 1850 e 1870 Emília é incluída nos registros alforriando ao menos 10 escravizados (dois homens e oito mulheres). Tais alforrias foram pagas pelo valor do mercado, o que sugere a visão de empreendedora que tinha Emília, não só como quitandeira, mas como dona de escravizados.

Na trajetória de Emília fica claro, por fim, o seu investimento na compra de joias e no mercado imobiliário. Emília morre dois anos antes da abolição formal da escravidão, cheia de posses, que incluíam bancas de mercado, cativos, imóveis e joias.

Joana Guedes de Jesus

Joana Guedes de Jesus - Rio Grande do Sul - Século XIX

Joana era uma africana ocidental, denominada Joana Mina, que deve ter chegado à Porto Alegre na primeira metade da década de 1830. Joana pertencia à Dona Maria Guedes de Menezes e adquiriu a liberdade em 1862, e de forma gratuita posto estar doente e “ter servido durante seu cativeiro com todo o zelo e dedicação”. Em 1869 já aparecia nos registros como uma mulher forra, então chamada Joana Guedes de Jesus. Em 1870, casou-se na igreja da Madre de Deus com africano Marcelo Angola. Viviam juntos havia muitos anos: ele como campeiro e ela com várias ocupações domésticas e serviços nas charqueadas próximas. Marcelo tinha 50 anos quando conseguiu se alforriar em 1865, pagando um conto de réis em 1870. Na ocasião do casamento tinha 55 anos e Joana 41. Talvez tenham se conhecido ali, há anos, ambos nas charqueadas nas margens do rio Jacuí: ela tendo começado aos doze anos, em 1834, e ele aos onze, desde 1827. Joana e Marcelo transformaram escravidão, liberdade, amor, sonhos e recordações em projetos familiares reconhecidos pela igreja, logo depois de conquistarem a alforria e juntarem mais recursos. Na época do casamento em 1870 eles já tinham uma filha, Laura, que nasceu em 1839. Laura foi alforriada quando tinha 39 anos, pagando um conto e cem mil réis. Demorou e não foi barato: na época, aquele valor significava o equivalente a cerca de cinquenta bois. As uniões conjugais reconhecidas pela igreja e a liberdade de parentes podiam ser considerados projetos africanos, mas não eram estratégias fáceis, tampouco caminhos garantidos. No entanto, foram trilhados por muitos ancestrais e parentes africanos.

Gertrudes Maria

Gertrudes Maria - Paraíba - Século XIX

Gertrudes ao que tudo indica nasceu na Paraíba e conquistou sua liberdade por meio de alforria paga junto ao casal Carlos José da Costa e Maria Antônia de Melo. Apesar do pagamento, Gertrudes vivia numa liberdade condicional: deveria acompanhar seus donos até à morte. Esse pode ter sido o paradoxo de muitos escravizados que sonhavam com a alforria - tinham que amealhar recursos, economias próprias, serviços extras prestados ou esmolas arrecadadas -, ganhar a confiança de seus senhores, pagar pela alforria (sua e/ou de seus filhos) e no entanto sob a condição de que permaneceriam leais aos mesmos até o fim de seus dias. Dessa maneira, enquanto os senhores precisavam estar vivos e lúcidos o suficiente para, entre dádivas e a necessária submissão, garantir a liberdade condicional de antigos e fiéis cativos, os escravizados desejavam que seus proprietários morressem logo para que pudessem usufruir da liberdade. Não foram poucos os casos de cativos acusados de tentar envenenar senhores e inúmeros foram os episódios de herdeiros que, após a morte de seus antepassados, desrespeitaram os acordos. E essa parece ter sido a falta de sorte de Gertrudes. Os herdeiros, uma vez endividados, resolveram vendê-la para pagar os credores.

Entre 1828 e 1842 vamos encontrar Gertrudes nos tribunais via processos, petições, alvarás e procurações. Ela tentava provar sua liberdade condicional, o valor inicialmente depositado e a ilegalidade de estar sendo vendida em hasta pública. Descobrimos assim que Gertrudes Maria era solteira, trabalhava como quitandeira, e com 30 anos, por volta de 1826, tinha comprado parte de sua liberdade. Segundo os registros de sua carta de alforria, ela havia oferecido 50% de seu valor e prometeu o restante com trabalho até a morte de seus senhores.

No registro dessa sua liberdade condicional mencionava-se que seus senhores só tinham aceitado esse tipo de pagamento por causa dos “bons serviços” que até então Gertrudes prestara. Não era, porém, apenas um formalismo jurídico: tal espécie de concessão ficou registrado no documento oficial e inscrito socialmente, num ritual que reforçava gratidão, submissão, dádiva, dependência e paternalismo. Mas para que não restassem dúvidas, foi explicitado em tom de ameaça jurídica: “sendo que essa dita escrava falte à condição que lhe pomos de nos acompanhar como já dissemos a tornaremos cativa”. No entanto, nesse caso a quebra contratual foi a senhorial.

A disputa judicial tomaria tempo. O apoio de advogados e de testemunhas chamadas para depor atesta o esforço de Gertrudes em fazer valer sua liberdade, especialmente provando o depósito de 50% de seu valor e os acordos lavrados no registro da alforria.

Germana

Germana - Bahia - Século XIX.

Germana nasceu em 1819, em Salvador, e era casada com Manuel Pinto de Oliveira  - um escravizado forro. Depois de trabalharem por alguns anos conseguiram reunir 180 mil réis para comprar a liberdade de Germana.

No entanto, em 1879, quando já contava com 60 anos - idade considerada avançada para época, devido à alta mortalidade, sobretudo da população escravizada - Germana entrou com uma ação na justiça dando queixa do rigoroso cativeiro que sofria com o senhor, que lhe negava a alforria, a despeito de ter recebido o dinheiro necessário para compra da liberdade. Ela pedia que fosse depositada a quantia, “visto que seu senhor não tem querido prestar-se a um acordo razoável sobre o justo valor da suplicante”. Na justiça, Germana argumentava que já estava muito idosa, que continuava sofrendo castigos físicos, que merecia a alforria, mas que seu senhor não lhe dava ouvidos e continuava a desconhecer sua condição física. "Sem atenção a avançada idade da suplicante, seus achaques físicos e crônicos, adquiridos na constância do trabalho, de ter a suplicante produzido quinze crias, uma das quais liberta, na idade de seis meses, pela fabulosa quantia de 500 mil réis, e ser a suplicante casada e viver separada do seu marido homem livre também idoso e achacado de moléstias".

Durante o julgamento o valor de Germana foi sendo reduzido. Seu senhor avaliou-a inicialmente em 250 mil réis, mas no final da ação seu preço ficou 30 mil réis abaixo do original. Germana requereu, então, a devolução da diferença da quantia depositada por ela. Aí está mais um caso que revela como, mesmo com idade avançada, escravizadas se negavam a se manter no cativeiro e lutavam para passar seus últimos dias ao lado da sua família. Não sabemos que tipo de tarefa Germana executava, mas ela entendia o preço que a liberdade podia ter.

Manuel Padeiro e Negro Lucas

Manuel Padeiro e Negro Lucas - Rio Grande do Sul - Século XIX

No Rio Grande do Sul do século XIX existiram vários quilombos e mocambos estabelecidos, tanto nas proximidades de Porto Alegre quanto nas áreas do litoral e regiões de fronteira com o Uruguai e Argentina. Antigas áreas produtoras de couro, carne e trigo tinham cativos africanos.

Nas regiões charqueadoras de Pelotas e Rio Grande surgiram dois quilombos na década de 1830, mais conhecidos pelos nomes de seus líderes: Manuel Padeiro e Negro Lucas. Em 1833, foi atacado e considerado destruído o quilombo comandado por um preto de nome Lucas, em Rio Grande. Lucas pode ter sido um dos escravizados entre os milhares que desembarcaram em Porto Alegre e outros portos do Brasil meridional no primeiro quartel do século 19. Constava que tal mocambo era bem antigo e localizado no embreado do mato da Ilha dos Marinheiros próximo à cidade do Rio Grande. Viviam ali tanto escravizados como libertos refugiados que mantinham contatos mercantis. Com uma base camponesa articulada com os cativos nas charqueadas, os quilombolas transitavam também nas regiões vizinhas. Nessa onda de repressão, depois de uma emboscada, Lucas foi assassinado.

Na mesma década, nas proximidades da Serra dos Tapes, nos arredores de Pelotas foi constituído o quilombo de Manuel Padeiro, entre 1831 e 1832. Pouco se sabe sobre a vida de Manuel Padeiro. Há registros de que costumava ser chamado de general sugerindo habilidades militares. Eles estabeleceram conexões dos Quilombolas com taberneiros, roceiros e sitiantes locais, muitos dos quais africanos libertos.

Nas tentativas de capturar Manoel Padeiro, o africano Simão Vergara acabou preso, processado e julgado. Simão mantinha contatos com quilombolas libertos e cativos assenzalados. Ele foi condenado a 15 anos de prisão. Manoel Padeiro, porém, conseguiu escapar e desapareceu. Houve quem dissesse que foi parar no Uruguai, atravessando a fronteira; outros, garantiram que suas habilidades militares foram aproveitadas na Guerra dos Farrapos, com ele alistado clandestinamente em tropas de lanceiros negros. Manoel Padeiro virou uma entidade naquelas matas e até hoje ele é cantado nos terreiros de Pelotas e adjacências.

Felipa Aranha

Felipa Maria Aranha - Pará - Século XVIII

Na segunda metade do século XVIII, Felipa Maria Aranha organizou um quilombo constituído por mais de 300 escravizados fugidos que se autossustentaram por muitos anos, sem que fossem ameaçados pelas forças legais. Situado nas cabeceiras do igarapé Itapocu, um braço do Rio Tocantins, onde agora existe o município de Cametá, no Pará, chamava-se quilombo do Mola ou Itapocu.

Felipa era provavelmente originária da Costa da Mina. Com cerca de 10 a 20 anos, foi capturada e vendida como escrava, levada para Belém. Em seguida, a enviaram para trabalhar numa plantação de cana-de-açúcar na comunidade de Cametá. Não suportando os maus tratos, ela fugiu junto com outros escravizados, em 1750 e criou o quilombo do Mola, que chefiava. Esse era um quilombo que apresentava um alto grau de organização política, social e militar. Quando começaram a sofrer com a repressão colonial, foi graças à liderança militar de Felipa que conseguiram expulsar as forças portuguesas e os vários ataques de capitães-do-mato. Dona de grande capacidade de articulação política, ela estruturou uma entidade composta de cinco quilombos: Mola, Laguinho, Tomásia, Boa Esperança e Porto Alegre, a chamada Confederação do Itapocu. A entidade empreendeu severas derrotas às forças escravagistas e, diferentemente do exemplo de Palmares, só cessou sua luta no momento em que Portugal ofereceu o perdão político e declarou os quilombolas súditos da Coroa.

Felipa Aranha morreu em 1780. A resistência e o protagonismo das mulheres negras são históricos e tem suas raízes fincadas na tradição e na cultura de suas ancestrais africanas, através de artifícios, improvisações e muita astúcia, elas reinventavam o seu cotidiano, conseguindo assim melhores condições para si e para os seus. As terras do Quilombo de Felipa Maria Aranha só receberam reconhecimento legal recentemente, em 2013.

Ana Clara Andrade

Ana Clara Maria Andrade, Deolinda e Isabel Maria da Conceição - Rio de Janeiro - Século XIX

Mulheres capoeiristas no século XIX?” Ironizando a cena, a edição do Jornal do Commercio de 29 de Janeiro de 1878 noticiava que algumas pretas tinham sido “presas por capoeiras” na Rua do Riachuelo, no Rio de Janeiro, sob a acusação de serem “peritas na capoeiragem” e com adjetivo de “destemidas”, foram detidas as mulheres negras livres Isabel Maria da Conceição e Ana Clara Maria Andrade, juntamente com a escravizada Deolinda. Segundo o jornal, elas estavam todas em “renhida luta”, desafiando pedestres e, depois, as próprias autoridades.

Identificada como pratica - luta, ritual e dança -  associada às grandes cidades atlânticas e à população negra, a capoeira e seus “capoeiras” -  homens e mulheres - proliferaram no final do século XVIII e ao longo do século XIX , especialmente no Rio de Janeiro, em Salvador e no Recife. Não se sabe de que modo essa prática se desenvolveu e chegou a várias regiões do país, junto aos setores livres e não negros, como imigrantes vivendo no Rio de Janeiro, por exemplo. Até a década de 1850 mencionava-se a existência de uma capoeira escrava praticada por africanos, sobretudo centro-ocidentais e pela população negra livre. No último quartel oitocentista a atividade se espalhou com rapidez por diversos centros urbanos, mobilizando pessoas livres, consideradas brancas e mesmo letradas. No Rio de Janeiro havia muitos escravizados de ganho, participantes do mercado de rua e de capoeiras.

Ainda assim é difícil imaginar cenários em que mulheres quitandeiras podiam ser também capoeiristas. Na época em que as “peritas” e “destemidas” mulheres capoeiras foram presas, o Rio já era dividido em dois grandes grupos (subdivididos em maltas) de capoeiras, exaltados em versos, suspeitos de uso político no jogo eleitoral e celebrizados em alguns romances: nagoas e guaiamuns. Infelizmente, porém, não conhecemos muito mais sobre as mulheres que viraram notícia em 1878.

Tia Ana

Tia Ana - Ceará - Século XIX

Ana, mais conhecida como Tia Ana, cujo nome completo e data de nascimento e morte ignoramos, liderou em 1835 uma revolta de escravizados na fazenda do português Francisco Antônio de Carvalho, apelidado de Marinheiro Chico. A propriedade ficava no interior do Ceará. Em razão do declínio das plantações de cana-de-açúcar e da consequente migração de mão de obra escravizada para as áreas cafeicultoras do Sudeste, a região vivia um momento de recessão. Por isso mesmo, o tratamento reservado aos cativos piorou, com os senhores buscando aproveitar ao máximo a sua mão de obra. O resultado foi o aumento da violência da parte tanto dos Senhores quanto dos escravizados.

Francisco de Carvalho criava gado e tinha plantações para sua subsistência. Armou-se, então, uma revolta dos escravizados da fazenda, que pretendia acabar com o tratamento indigno dado aos trabalhadores do campo. O estopim foram os castigos impostos a uma escravizada idosa e muito benquista.

Numa noite em que os capatazes dormiam no alpendre, os escravizados tomaram de assalto a residência: assassinaram todos os que estavam em seu interior e atearam fogo à casa grande. Alguns revoltosos fugiram em direção à Pernambuco, levando consigo os bens de valor que encontraram na casa, enquanto o grupo de tia Ana tratou de libertar Jerônimo Cabaceira, desafeto de Francisco de Carvalho, da cadeia. Francisco de Carvalho, assim que soube do ocorrido, retornou a sua fazenda. Foi, porém, acossado por Jerônimo Cabaceira e, perdendo o controle da situação, acabou por enforcar-se numa mangueira de sua propriedade. Essa não foi, com certeza, a maior rebelião escrava, nem um caso isolado. Mas mostra o protagonismo de mulheres na liderança de movimentos de coletivos de insurreição.

Félix Soares

Félix Soares - Rio Grande do Norte - Século XVIII

O africano Félix Soares foi o principal acusado da “conspiração dos negros do Congo”, na capitania do Rio Grande do Norte, em fins de 1772. Ele pertencia a algum ramo da família real do Congo. Na capitania do Rio Grande do Norte , com ajuda do índio letrado Domingos Tavares Félix entrou em contato com os comandantes das tropas de negros libertos. Autoridades coloniais, amedrontadas, mencionavam nas correspondências que legaram a existência de “projetos dos negros do Congo”. O que tramavam, não sabemos. Comentavam, porém, que todos os escravizados da província falavam abertamente em liberdade, posto terem descoberto que seriam forros pela lei de 16 de janeiro de 1773, em Portugal.

Escravizados, em várias áreas coloniais, acompanhavam com grande expectativa os detalhes, os desfechos, os conflitos, as discussões e os debates que ocorriam nas metrópoles, sobretudo os que poderiam atingi-los e beneficiá-los. Por ocasião da abolição da escravidão em Portugal, ficaram logo agitados, em 1769, acreditando que poderiam ser contemplados pela mesma legislação, caso essa se estendesse para as colônias.

Viajando em navios para metrópole, escravizados - muitos marinheiros, grumetes ou cativos domésticos vindos dos domínios do ultramar - tentavam fugir ou se passar por libertos eventos envolvendo disputas europeias e coloniais eram igualmente percebidos e avaliados por escravizados africanos libertos e nascidos nas colônias sempre atentos às conexões políticas e impactos legais. Durante a repressão e os interrogatórios, o africano Félix negou tudo.

Clara Courá e Mariana Xambá

Clara Courá e Mariana Xambá - Minas Gerais - século XVIII

Os poucos registros históricos das africanas Maria Xambá, Isabel Mina, Mariana da Costa e Clara Courá revelam, ainda que de forma parcial, a experiência de mulheres negras à frente de revoltas ou conspirações de escravizados e forros no Brasil colonial. As escravizadas africanas Mariana Xambá e Clara Courá estavam envolvidas numa conspiração descoberta em 1744 em Serro Frio, em Minas Gerais. Foram elas as principais articuladoras dos planos e das ações de um reinol, considerado mendicante e chamado pelo apelido de João Lourenço Negro. Ele se intitulava "príncipe encoberto", "ensinava a ler alguns rapazes" e se misturava com indígenas propagando ideias messiânicas e milenaristas.

No século XVIII, Minas Gerais testemunhou não só revoltas fiscais, quilombos e perseguições da Inquisição. Notícias de revoltas e conspirações de escravizados estavam por toda parte. Décadas antes, em 1719 e em 1725, as comarcas do Rio das Mortes e de Vila Rica tremeram diante de boatos e da repressão a revoltas.

Em 1725, as próprias autoridades lembraram dos riscos do possível levante que poderia ter acontecido em 1719, mas acabou “remediando-se aquela sublevação com as diferenças das Nações, querendo cada um para si o reinado”. A Revolta ocorreria numa quinta-feira de Endoenças - quinta-feira da Semana Santa. Os insurretos se aproveitariam da presença maciça da população nas igrejas para arrombar as casas e roubaram armas. A repressão foi imediata, sendo presos "os chamados os reis das Nações Mina e Angola e outros que estavam nomeados cabos e oficiais da sublevação”.

Rosa

Rosa - Rio Grande do Sul - Século XIX

Numa madrugada fria de 1870, Rosa atravessaria a fronteira do Uruguai, fugindo de uma fazenda criatório de gado localizada na margem direita do Imba, junto a Uruguaiana. Fazia parte de seu plano um projeto familiar. Nascida no Brasil e com 39 anos, Rosa fugiu acompanhada dos filhos Eugênio, Francisco, Fláubio, Domingos e “um ainda de peito”. Não teve, porém, total sucesso em sua empreitada, sendo capturada. Mas o que parecia uma escapada individual era parte de um movimento mais amplo que levou muitos escravizados a fugir de diversas áreas do Rio Grande do Sul e alcançar o Uruguai e a Argentina.

Migrações transnacionais nas fronteiras meridionais eram um expediente antigo, remontando ao período colonial. As zonas de fronteira eram conhecidos territórios de contrabando, de fugas e esconderijo de desertores militares ou criminosos. Evasões desse tipo conheceram novos capítulos com a Guerra dos Farrapos, quando escravizados avaliaram melhores oportunidades ante os muitos conflitos armados.

A passagem para o Uruguai não era uma garantia de liberdade pois lá também vigorava o regime escravocrata. Contudo, entre 1842 e 1846, a situação se alterou diante das leis abolicionistas daquele país: os filhos de escravizadas eram considerados livres, com o fim da escravidão no Uruguai, e depois, em 1853, na Argentina. Assim, fugas naquelas fronteiras podiam ser encaradas como perda de escravos por parte de estancieiros brasileiros, mas igualmente como ação apoiada por argentinos e uruguaios que temiam o expansionismo escravista brasileiro na região.

Os escravizados também tinham suas estratégias e assim pode ser entendida a atitude de Rosa. Ela procurava assegurar não só sua liberdade, como a de seus cinco filhos.