Apresentamos aqui trechos do livro "Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus. A poetisa vivia na favela do Canindé, em São Paulo, e seu livro se passa nos chamados "Anos Dourados", o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Reflita sobre os aspectos apresentados em relação ao custo de vida no período e sobre a estabilidade do regime democrático.
Observação: a escrita é conforme o que é apresentado no livro.
20
de maio de 1958
...Quando
cheguei do palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizerme que havia encontrado
macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco
do macarrão com feijão. E o meu filho João José disseme:
—Pois
é. A senhora disseme que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi
a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:
—
É que eu tinha fé no Kubstchek.
—
A senhora tinha fé e agora não tem mais?
—
Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz
tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os
políticos
fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia. ...Os políticos
sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu
povo oprimido.
13 de junho de 1958
Os
preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta
com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. E o
terrestre. E o
atacadista.
A
lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que alegrou-me imensamente.
Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei dos juizes que é Deus.
Foi em janeiro
quando as aguas invadiu os armazéns e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez
de vender barato, guarda esperando alta de preços: Vi os homens jogar sacos
de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes
que não trabalham e passam bem.
16 de agosto de 1958
Passei
na sapataria. O senhor Jacó estava nervoso. Dizia
que se viesse o comunismo ele havia de viver melhor, porque o que a
fabrica produz não
dá para as despesas.
Antigamente era os
operarios que queria o comunismo. Agora são os patrões. O custo
de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.
24 de outubro de 1958
...Eu
fiz café e mandei o José Carlos comprar 7 cruzeiros de pão.
Dei-lhe uma cédula de 5 e 2 de aluminio, o dinheiro que está circulando no
paíz, Fiquei nervosa quando contemplei o dinheiro de aluminio. O dinheiro devia ter
mais valor que os generos. E no entretanto os generos tem mais valor que o
dinheiro.
Tenho
nojo, tenho pavor
Do
dinheiro de alumínio
O
dinheiro sem valor
Dinheiro
do Juscelino.
5 de novembro de 1958
Comecei
sentir fome. E quem está com fome não dorme.
Quando
Jesus disse para as mulheres de Jerusalem: — “Não Chores por mim.
Chorae por vós” — suas palavras profetisava o inverno do Senhor Juscelino. Penado
de agruras para o povo brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que
encontrar no lixo ou então dormir com fome.
Você
já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica
rodando sem
pegá-la?
É igual o governo do Juscelino!